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Quem não Ama a Solidão, não Ama a Liberdade*

"Nenhum caminho é mais errado para a felicidade do que a vida no grande mundo, às fartas e em festanças (high life), pois, quando tentamos transformar a nossa miserável existência numa sucessão de alegrias, gozos e prazeres, não conseguimos evitar a desilusão; muito menos o seu acompanhamento obrigatório, que são as mentiras recíprocas. Assim como o nosso corpo está envolto em vestes, o nosso espírito está revestido de mentiras. Os nossos dizeres, as nossas ações, todo o nosso ser é mentiroso, e só por meio desse invólucro pode-se, por vezes, adivinhar a nossa verdadeira mentalidade, assim como pelas vestes se adivinha a figura do corpo. Antes de mais nada, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfadonha será. Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está

A escuta das palavras*

A palavra, em deslocamento por seus muitos territórios, também busca uma legibilidade para sua escuta escutando-se. Aptidão rara em meio as ditaduras da semiose verbal. Ao conviver sempre no mesmo lugar, ainda que em línguas diferentes, é excepcional vivenciar as dialéticas da aventura.   Em um mundo apropriadamente imperfeito, pode ser indizível, ao dicionário conhecido, encontrar o melhor para si. Essa suspeita se insinua nas possibilidades do instante perfeito nas entrelinhas da imperfeição. Essa transgressão da zona areia movediça de conforto existencial, se aproxima de um mundo razoável e suas contradições. Assim pode acolher e dialogar com a mutante medida de todas as coisas em cada um.     Ao destacar o viés dessas poéticas da irreflexão, se esboça uma negação de que tudo já foi dito, pensado, tentado. Nele um espaço desconhecido se abre como proposta.  Talvez a escola, ao ensinar a ler e escrever, também pudesse incluir aprendizados na arte de ouvir, sonhar, flu

O Amolecimento pela Sociedade de Consumo*

Nos países subdesenvolvidos, a arte (literatura, pintura, escultura) entra quase sempre em conflito com as classes possidentes, com o poder instituído, com as normas de vida estabelecidas. Em revolta aberta, o artista, originário por via de regra da média e da pequena burguesia ou mais raramente das classes proletárias, contesta o status quo, propõe soluções revolucionárias ou, quando estas não podem sequer divisar-se, limita-se a derruir (ou a tentar fazê-lo pela crítica, violenta ou irónica) o baluarte dos preconceitos, das defesas que os beneficiários do sistema de produção ergueram contra as aspirações da maioria. Nas sociedades industriais mais adiantadas, o artista pode permanecer numa atitude idêntica de inconformismo; porém, os resultados da sua atividade de criação e reflexão tornam-se matéria vendável e, nalguns casos, matéria integrável. O consumo do objeto artístico, seja ele o livro, o quadro ou o disco, quando feito sob uma tutela de opinião, que os meios de

Abraços*

Abrace-me de mansinho Pois abraço tem que ter jeito Suave que pode virar colo Deixe espaços para as asas - Não me aperte muito! Senão vira sufoco - Não me amasse Nem dobre minh'alma. Abrace-me, porém, inteiro - Não me corte em fatias Ninguém abraça um pedaço. Demore-se junto ao meu peito Atravesse meu corpo... e volte Pois preciso ainda deste abraço Amanhã... e depois ,,, e depois... Abrace-me, assim, sem pressa Salva-me um dia e uma noite Salva-me uma vida... Pois te abraço para recuperar Tudo que ainda me falta Fechas assim os olhinhos Para dizer-me que compreendes Que enquanto os corpos se abraçam As almas alegres se enlaçam. Aquele abraço era o lado bom da vida Mas eu também sabia Que para merecê-lo Eu precisava me esquecer E o que é trágico e irônico Para ela viver, eu precisava perdê-lo Tínhamos um problema de territórios Enquanto ela queria abraçar o mundo Eu ficaria contente em abraçar ela. Ainda lhe lev

Sala de pensar*

Aqui em minha sala, entre os livros e a tela, lembro o que Octavio Paz escreveu “amanhece o mundo sem gota de sangue”, penso que esse extrato poético é figuração da imagem, é potencialmente viva, e como ele mesmo diz em outro poema “También la luz em si misma se pierde”. O que me assombra é o que me dá alento para abrir os olhos e encarar o sangue que escorre pelo mundo, como eu via através da vidraça da janela, no passado, a chuva que atrapalhava minha vida. Faço um café, ouço o sibilo das caturritas que povoam meu bairro, ou portas a bater no apartamento ao lado; ao fundo, o violino do vizinho que estuda no mínimo umas quatro horas por dia.  Eu também tenho minhas determinações, acordar ainda na escuridão das manhãs, depois nadar, pensar e esquecer até completar uma hora, submerso, entre um ritmo incessante, leve, cadenciado, penso que é assim que se deve viver. Nuvens carregadas plumbeiam meu olhar, a sala de um azul cinzento, me imagino segurando um violino entre o

Enquanto se espera*

No passado, médicos acreditavam que pacientes, por se encontrarem enfermos, não tinham outros compromissos e prioridades, a não ser esperar pelo atendimento do doutor, que com o consultório sempre abarrotado, lhes socorreria na medida do possível. Do alto de seus tronos, criaram então salas de esperar. Colocaram algumas cadeiras e revistas velhas e julgaram que a resignação dos pacientes seria uma constante eterna.   Os tempos mudaram. Surgiu o telefone, a recepcionista, a secretaria, o computador, o celular, o marketing, a gestão, a concorrência, os planos de saúde, a mídia, a especialização, e a sala de espera precisou se readaptar. Não poderia continuar sendo um amontoado de cadeiras dispostas ao redor de uma sala ou corredor, onde pessoas esperavam até que algo acontecesse.     Fomos programados para ter pressa, nunca nos ensinaram nada sobre a arte de esperar. Nem todas as esperas são iguais, nem todos esperam da mesma maneira e nem todas as esperas são ruins. Até cer

Quais São os Escritores Que Nos Enriquecem ?*

Quais são os escritores que nos enriquecem? Penso que isso é diferente para todos. Penso que lemos muito subjetivamente. Lemos aquilo de que precisamos. Há quase uma força obscura que nos guia para determinado livro numa determinada altura; depois criamos problemas quando tentamos racionalizar isso e dizemos que este escritor é bom e aquele escritor é mau. Nunca fui capaz de dizer isso.  Compreende, não posso dizer que Simone de Beauvoir seja má escritora, mas posso dizer que não me enriquece. O que é uma afirmação totalmente diferente. E penso que isso varia muito. Elaborei uma lista de escritoras e dos seus livros que me enriqueceram. Mas não é uma seleção literária. É uma seleção puramente subjectiva e a sua podia ser totalmente diferente. Perguntam-me muitas vezes o que penso acerca de Simone de Beauvoir, o que penso acerca de The Golden Notebook, e é-me sempre difícil responder. Não os considero livros enriquecedores, porque me repetem incessantemente como as coisas e

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