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Mostrando postagens de maio, 2021

O discurso de cada um*

  Cada um de nós tem um discurso próprio, uma forma de verbalizar o mundo. Às vezes compreensível, estruturado, coerente, mas tantas outras vezes nem tanto assim. Muitos apenas deixam transparecer o que lhes vai à alma; outros se descabelam de tanta expressão.  Algumas destas expressões são múltiplas e abrangem olhares, toques, sons, paladares e cheiros e também muitos outros sentidos que não podem sequer ser mencionados, tomando a atenção do outro por inteiro. Inúmeras outras expressões, entretanto, se recolhem e se manifestam somente para poucos escolhidos. Muitos mesclam momentos de recolhimento com outros de euforia, nos lembrando que podemos ser imprevisíveis até mesmo dentro de nossa linearidade.   Não há um discurso igual ao outro, como não há necessariamente uma imposição de padrões nos discursos já conhecidos, simplesmente porque estes podem mudar.     Quantas vezes, quando supomos já conhecer nossos partilhantes e fazemos nossos próprios discursos em função desses conhe

Anotações e percepções de um Filósofo Clínico*

Amigos, ao encontrar essa que talvez seja uma das mais tristes tirinhas do Calvin - neste caso, uma tirinha criada por um fã -, recordei vividamente de algo que passei há alguns anos como professor numa escola privada.                                                                                        ***********   No último ano em que lecionei Filosofia no fundamental, para uma turma de oitavo ano (isto é: crianças de treze e catorze anos), havia um menino com olhos que faiscavam com o fogo da vida. Alegre, falante, brilhante.   Ele não conseguia participar das aulas sentado. Por isso, na minha classe podia andar pela sala livremente - e foi em uma aula de Filosofia que descobriu que recuperava a calma o foco ao se deitar sob o quadro, justamente no espaço em que o professor usualmente caminha durante as explicações.   Pois bem: durante uma aula, a coordenadora entrou na sala e viu o pequeno deitado ali. Imediatamente gritou com ele, que teria sido conduzido à direção se eu

Anotações e percepções de um Filósofo Clínico*

  Notas sobre a brevidade das reflexões     Algo presente em minhas reflexões, sobretudo as relacionadas ao meu trabalho como terapeuta, são as proposições apresentadas como possibilidades. O consultório e a formação em filosofia clínica me levaram a considerar as singularidades. Ou seja, se considero a pessoa por si, não a comparo a ninguém, não faço estatísticas, não crio parâmetros normativos, não faço filtros do que há em comum nas pessoas.  Considero a complexa individualidade de cada pessoa. Isso me inviabiliza generalizações. As universalizações são possíveis em teses filosóficas, sociológicas, teológicas etc. mas tropeçam quando se deparam com as exceções. E o consultório é o espaço onde as exceções são as regras (o paradoxo também é comum no consultório).   Quando afirmo algo nessas reflexões, cabe destacar a brevidade das palavras impedindo as nuances, os desdobramentos, os aprofundamentos e uma série de respostas necessárias às objeções. É o risco de se expor em consider

O hóspede do poeta*

“Se todo tempo é eternamente presente Todo tempo é irredimível.” T. S. Elliot   O início, a flor da vida, a lua estendida no final da rua, A infância, o clarão do dia que revela a vida dos olhos, Depois vem o nascer, do que vem o choro, Amor puro, a única coisa que preenche a memória nua.   O estar dentro no mundo das coisas esquecidas, E tudo brilha, o turbilhão que nasce, a noite que assusta, O dia muda, a noite que esquece o lamento do acordar, A noite que abriga a solidão, estrelas para se beijar, O chão para rastejar durante o dia é o que sobra.   Assim se passa à outra fase: esquecimento é mútuo, O corpo avança, o corpo descola o tudo, a infância dá adeus, Depois dorme, renasce no movimento da Terra, A morte não existe, o vitalismo esconde o medo, Solidão, a terapia da compreensão dos adeuses.   Um dia acordar ao lado de dentro do corpo, Que aquece, o que se fala, do que se sente, Tudo é um tocar nas paredes do desconhecido, Na dança

Taumaturgos*

"Fazer durar o que passa, adiantar ou atrasar a hora prescrita, apoderar-se dos segredos da morte para lutar contra ela, servir-se de fórmulas naturais para ajudar ou frustrar a natureza, dominar o mundo e o homem, refazê-los, talvez criá-los.."                                                                  Marguerite Yourcenar                            Existe uma pluralidade de eventos, ainda sem batismo, na atividade clínica. Essa irrealidade, nem sempre decifrável, aprecia se esboçar em algum ponto do constructo metodológico, as habilidades, o talento do terapeuta, a qualidade da interseção, como um oráculo em busca do melhor instante para se revelar. Esse rascunho, sobre o fenômeno taumaturgia, se propõe a uma breve introdução sobre o tema. Ao realizar um movimento descritivo dessas práticas tão antigas e tão próximas, um subterfúgio ritual se desdobra em várias linguagens. Ao eficaz articulador da palavra mágica se oferece a matéria-prima das fontes da palavra t

Dialogar*

  Sobre a Filosofia Clínica Dialogar ou não com as outras linhas Terapêuticas. Estudei por sete anos Psicologia e por questões circunstanciais, tive contato direto com a Psiquiatria, estudando e aprendendo durante 12 anos. Convivi com terapeutas do Brasil inteiro, tive uma clínica de terapia comportamental e eu mesma como paciente fiz terapia cognitiva, gestáltica, psicanalítica até chegar na Filosofia Clínica. Com isso, acho que posso dizer alguma coisa enquanto paciente e como estudante e pesquisadora. Entendo que se tem uma linha que dialoga com as outras é a Filosofia Clínica, primeiro por ser honesta no sentido de dar o mérito de sua fundamentação a mãe de todas, ou seja, a própria Filosofia, que por si só já é um oceano tão grande e recheado de conteúdos que poderíamos dela já ter múltiplas e infinitas linhas terapêuticas.   Segundo porque profissionais de todas as áreas podem fazer o certificado B, que dá a base teórica a clínica filosófica, porém para a pratica e para o cer

O preço de escrever*

Este é o artigo número 200 deste blog. Nunca imaginei que manteria essa atividade por tanto tempo com tamanho entusiasmo e regularidade. Começou como uma brincadeira e foi ficando. Antes de qualquer coisa, quero agradecer aos leitores que me acompanharam, criticaram, aconselharam e, especialmente, tiveram paciência comigo na riqueza e na pobreza dos textos. Preciso de vocês, mas também devo confessar algo que talvez não gostem de saber. Escrever é o verdadeiro prazer, ser lido é uma satisfação complementar.   Jamais tive obrigação alguma de produzir textos. Escrevo porque gosto, sinto prazer, relaxo, me forço a pensar, desligo do cotidiano e no final, quando nasce o texto, quase sempre, sou possuído por um sentimento de arrebatamento. Em cada argumento que produzo, me dou o luxo de viajar com as ideias para qualquer lugar. Posso também ser quem eu quiser e, se me der vontade, utilizar minha caneta como uma arma potente e terrível, criticando, polemizando, elogiando, detonando, fazend

Algumas considerações sobre terapias*

A revista SUPERINTERESSANTE, edição 254, trouxe como matéria de capa: Terapia Funciona?   Dei um longo depoimento, depois troquei alguns e-mails com a jornalista responsável pela matéria, onde aparece uma citação minha e algumas linhas esperançosas sobre o meu trabalho.   Segundo a jornalista Denize Guedes, que assina a matéria, as neuroimagens de pesquisas, como a realizada na Universidade de Leeds, Inglaterra, apontam para um parecer: talvez “a psicoterapia não funcione pelo motivo que os terapeutas apontam”. O que faria com que a psicoterapia funcionasse na opinião de muitos especialistas é o efeito placebo, a convicção da pessoa de estar sendo auxiliada, da sugestão, da vontade da pessoa em sair do conflito.   Existe algum endereçamento na Filosofia Clínica sobre isso?   Primeiro, algumas vezes a psicoterapia funciona pelos motivos nomeados pelos terapeutas. Exemplo: às vezes impulsos reprimidos, o trabalho direto com os conflitos, a identificação de crenças entortadas faze

Os pressupostos*

  A filosofia não nasce como um completo rompimento com a religião, o mito, a arte etc. Desde os primeiros pré-socráticos, por exemplo, indícios dos ensinamentos da religião órfica está presente em algumas noções como a expiação, da qual trata Anaximandro, e alma, como a pensa Heráclito.   Por isso, acusar, por exemplo, os filósofos cristãos de pensarem tendo as verdades de sua fé como preâmbulos e, por isso, seus pensamentos não serem filosóficos é inconsistente. Todo filósofo parte de pressupostos próprios de sua existência. Nem Descartes escapa dessa. Seu método é puramente hipotético.   Na contemporaneidade, desde a ciência moderna, se buscou usar como critério para a investigação de suas verdades: a razão. Inútil ideia de alcance de uma verdade com neutralidade. Pois, toda produção humana, por mais rigorosa que seja, não é neutra. Mas, nem por isso, as contribuições feita por cada indivíduo à humanidade devem ser desvalorizadas.   A filosofia, a arte (poesia, literatura, pin

O mundo dos outros*

  É comum não se dar conta dalgum refúgio amistoso, um lugar agradável para se viver. Em muitos casos só bem depois de ter partido é que se consegue algum vislumbre sobre a arqueologia dos escombros. O esboço sobre as recorrências do acaso tenta perseguir aquilo que ficou pelo caminho. Até parece querer traduzir rascunhos sobre as recordações da noite. A aventura criativa da página vazia aponta buscas pelo inusitado aprendiz. A lógica das vontades interditadas não reconhece a luz do dia como única verdade. Os devaneios e as paixões, no entanto, não querem subverter o conforto da vida como ela é. Propõe deixar tudo como está e ser contraponto aos discursos apreciáveis. O ir e vir por essas poéticas do silêncio revela um andarilho dos contornos. Quase indizível a se oferecer num rumo indefinido. Interação com fenômenos nem sempre traduzíveis pela palavra conhecida. Nesse contato sutil da idéia com a realidade lá fora, muita coisa se refugia noutras possibilidades. Muitas delas tão

Linguagem e Singularidade*

  A noção de linguagem que Wittgenstein apresenta nas suas Investigações Filosóficas, cuja concepção é a de que o significado das palavras depende de seu uso na linguagem, em Filosofia Clínica se traduz como um dos princípios dos cuidados de que deve ter o filósofo clínico na sua atividade clínica, nas acolhidas existenciais a que se dispõe, e que, adversamente às técnicas tradicionais da psiquiatria ou das psicologias tradicionais - que não fazem senão hermenêutica sobre o discurso ou expressividade do indivíduo – permitirá guardar o sentido mais original da palavra no contexto discursivo do sujeito, ou seja, respeitando ou limitando-se a entendê-lo a partir e à medida de um sujeito em seu território. Sendo um projeto único, permite-se acessar todo um vocabulário, recheado de significados singulares para cada expressão de sua semiose.  Aquilo a que chamou “jogos de linguagem” refere-se, segundo o próprio Wittgenstein, aos vários usos das palavras e ao conjunto das atividades com as

Porta-Retratos*

“Quando não chega carta planejo arrancar o calendário da parede, na sessão de dor.”                                                  Ana Cristina Cesar   Andas beijando meninas e meninos, claro, não na mesma ordem. Eu beijei por última vez uma parede, aquele velho porta-retratos, enquanto voltavas de viagem, anos 1980 dos velhos amores. Estou pronto ao novo tempo, o distanciamento trouxe na bagagem a solidão, o passado das outras vidas que vivi se aproxima na mesma intensidade viral da poesia em movimento. Foi como um tsunami, a força das águas levou meus sentimentos para além desta cidade.   O vírus espalha sombras do esquecido, ele não consegue entrar no que se fecha, cerrado, o peito fortalecido pelo respeito, a solidariedade, não o medo, este já existe em todos os cantos deste país. Janelas abertas, sol que entra junto com a lua, invasora dos acontecimentos.     Ando relendo os meus amores, as amizades, os que já partiram antes mesmo de ter sentido que um dia eles partiriam

Qual é a função do filósofo?*

  Entendo que seja a de tornar acessível, por meio da linguagem, uma ordem das coisas - isto é: revelar uma região ontológica. * * * Boa parte do que fazem os professores universitários de filosofia - e é assim em todo o mundo, mas muito especialmente no Brasil - é, essencialmente, comentário sobre a obra de um filósofo. De fato, o comentarismo filosófico é um exercício muito útil, e mesmo necessário. Contudo, comentar a obra de um filósofo não é filosofar. A filosofia é outra coisa. * * * Afinal, os textos de um filósofo podem dar acesso à filosofia, mas a filosofia não está nesses textos. * * * A filosofia é uma atividade integral do homem. Ela mobiliza o ser inteiro. Não está nos livros dos filósofos. Não está em livro nenhum. Os livros, em si, não são filosóficos: eles são papel e tinta. Quando alguém os lê e entende, acessa uma região anteriormente ignorada da realidade – mas não compreende "a" filosofia. Ela não diz respeito a um conjunto de textos: ela diz

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