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COLHEITA E PROCESSAMENTO

Vânia Dantas
Filósofa Clínica
Uberlândia - MG


A historicidade é a base para a análise de dados e compreensão do processo do partilhante e algumas abordagens podem ser utilizadas na sua observação para elucidar a vida que se apresenta, até por meios não-verbais e intuitivos. Na contação da história de vida, cada palavra será importante, assim como a constituição sintática, a relação entre os termos, e a semântica, ou seja, o significado deles.

Agora, como se pode colher uma história de vida? Qual a lucidez necessária para que o partilhante fale do que lhe vai por dentro? Qual é a sua epistemologia? Quais são os instrumentos dos quais o ser se utiliza para conseguir dizer de si, coisa para ele tão difícil, porque muitas vezes ele não se conhece? De quais dados de semiose se vale a pessoa para se dirigir a você?

Na verdade, há agendamentos nos mínimos detalhes envolvidos na clínica, desde o momento em que a pessoa toma contato com o desejo de fazer terapia até o início das sessões, a presença do terapeuta e a influência de todo o entorno. Afinal, o que vai de mim em direção ao partilhante? Tudo agenda? A temperatura do ar, o aroma, a cor da parede, o tato e a pressão no aperto das mãos, a boca seca ou salivante durante a conversa...

No cotidiano, você verá que ela pode usar um gato ou um bebê para lhe falar e na apropriação da doçura desses seres lhe expor o sentimento que ela mesma não conseguiria... ou pode colocá-lo à frente de um filme de ação/violência para que você tome contato com o interior dela... ou pode lhe presentear com uma fichário sobre os mil modos de se preparar churrasco; ou CD’s representativos do mundo dela, não do seu.

E, nesse momento, você pode se perguntar: “Mas o fulano não gosta de mim, ele não me entende, veja o que me deu...” E você poderá perceber que não é o presente material que ele está dando; ele compartilha, está dando de si mesmo, são seus símbolos mais caros, talvez mais íntimos que o carinho e a sexualidade.

Assim, aprendemos a valorizar a expressão do outro a cada emissão de bolhas de sabão que soubermos receber; e esse saber às vezes é mais difícil mesmo que o emitir. Por isso, insistimos que deve ser valorizado, há que haver um estudo, há que suscitar no filósofo um desejo intenso de apreender um mundo novo que se abre, pois que, em nosso meio, cada pessoa tem sua fórmula... e fórmulas mutantes, também.... Ser terapeuta é desafiador, como o é o auto-conhecimento.

Algumas pessoas exporão sua coleção de fotos ou mostrarão letras de música; um estojo de lápis de cor ou de cera e algumas folhas de papel na sala de atendimento podem ser muito produtivas ao partilhante, lembrando sempre que é ele quem significa, ou seja, é ele quem dirá sobre o motivo do risco e da forma. Podemos encontrar aí a expressividade, a esteticidade, a semiose, e também, sem elas, ficaria difícil para alguns se apresentarem, pois talvez não tivessem desenvolvido suficientemente o dado verbal para comunicar-se eficientemente.

Aí pode-se pensar na terapia informal – a terapia de barzinho. Cinco horas de chope para poder dizer a frase necessária.... Ou caminhar pela areia da praia por seis quilômetros até o próximo lugarejo, Santo Antônio de Lisboa, em Florianópolis... ou o passeio no parque, desenvolvendo a similitude do olhar na observação de bichos e plantas.... A inclusão terapêutica no dia-a-dia acalenta nossa sensibilidade para a ação efetiva em clínica.

Mas... o que é falar de si? Falar de si é se ver no outro? é ver o outro como apoio para poder se mostrar, vendo que há algo de semelhante? Conte de seus passos e da circunvolução de sua estrela que receberei sua fala como um presente nas mãos. Os olhos perceberão suas alterações na boca e cílios. O ser captará o ser com o respeito de uma manifestação do Absoluto.

De quantas lágrimas se fez essa história que você tem ou a que te dão a conhecer? A importância do vivido é dada pela pessoa. Não fosse, teríamos noticiário. Conforme Packter, o relato da pessoa é uma interpretação dela sobre o que vivenciou, o que pode ser muito diferente do que deve ter acontecido. A história é dela, assim como todos os conceitos, significados e emoções. A fenomenologia ajuda-nos nessa atinência. E nada mais bonito do que o primado da percepção proposto por Merleau-Ponty em referência ao pintor que se integra com a imagem e como que entra nela para, após o encontro interior, conseguir devolvê-la ao mundo, na tela. Nas palavras de Marilena Chauí, é a experiência em que o Mesmo se faz Outro no interior de si mesmo.

Para Packter, “Merleau-Ponty mostra o corpo como uma atividade expressiva que precisa ser vivida para dar conhecimento a um sentido. Nós vivemos nas coisas e nas idéias; estamos no corpo enquanto tocamos os objetos e os habitamos.” Variável, entretanto, é a forma com cada pessoa experiencia isso.

Outrossim, fatos que te arrasariam não o fizeram a outros.

“É bobagem achar que a pessoa começará a se recordar de coisas horríveis, traumas imensos, dores etc... isso até pode ocorrer, conforme a pessoa se estruturou. Uns consideram as tristezas da vida algo que deve ser deixado longe da luz, outros apreciam revivê-las, outros ainda nem apreciam mas sentem que devem fazê-lo e então o fazem etc, etc, etc. É necessário conhecer intimamente a Estrutura de Pensamento da pessoa para saber se é necessário mexer no que está cicatrizado ou não. A priori eu não sei afirmar nada sobre isso.”(PACKTER, Caderno A)

Cuidado para não agendar justamente o nocivo. Os grandes obstáculos de sua vida não o foram para outros, assim como os grandes acontecimentos: pode não ser o casamento, nem o nascimento do filho, nem a formatura. Lembre-se de que há esterilidade, solteiros a sós tomando o chá fúcsia de hibisco, vidas que prescindem de papéis, sem diplomas ou jornais. Para alguns, o grande momento pode ser um dia ao sol após demorado internamento, o reencontro da energia numa xícara de café antes proibido, o alívio de conseguir a anulação de um casamento pela Igreja, o carinho de um gato que agora se pode ter em casa.

Quem atende pessoas não se assuste com o inusitado, porque é este que vem. Até vidas de gêmeos se fazem diferentes no seu próprio entender, por mais que compartilhem fatos.

Com o preenchimento da linha do tempo com os eventos cotidianos virá uma série de produções da mente, assim como do corpo e do espírito. Contradições aparecerão e você verá à sua frente, por vezes, uma metáfora, como um coração duro para apoiar uma mente que chora.

O conhecimento sobre os entremeios dos fatos trará a Estrutura de Pensamento, como foi para a pessoa e porque foi assim. Porque se pode sorrir com mau gosto e chorar num afago. Porque pode ser múmia em festas e soltar-se na repartição. Porque pode falar do que foi sem nunca ter sido. Porque pode querer demais, pela vida inteira, e nunca realizar. Porque pode amar o próximo e matar a si mesmo. Porque pode dizer com as mãos o que a voz não consegue. Ou porque não pode permitir que o corpo diga mais que a mente.

E o que dizer das questões trazidas à clínica, além de todas as considerações acerca das categorias? Estes são outros temas que podem ser pesquisados na historicidade que se apresenta, e merecem outro momento de estudo.

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