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Vontades alheias*


Alguns cogumelos vivem no mundo real; para eles, o devir é o que existe: a grama, a pedra, o orvalho que bebem, o tronco das árvores que eles mesmos ajudam a decompor.

Há os que sonham, saltitam no imaginário, um outro mundo no qual Platão preferiria viver e no qual plantava a sua verdade. Era assim pra ele, diria o Hélio. É assim para muitos. Lá eles são fortes, têm bolinhas azuis na sua copa de guarda-chuva vermelho e por dentro são uma sanfona macia e doce.

E há ainda os seres simbólicos, metafóricos, psicodélicos, mitológicos, que existem em outra dimensão, flutuam para não se espatifarem sobre os blocos duros da realidade – e nem do sonho, imagina! Conseguem sumir do espaço insosso, espaço grosso no qual vivem e que não conseguem mudar. A rotina de ir à missa, diz minha mãe, é um meio de vida para se ter condições para sobreviver na vida a que se reservou o cogumelo bege.

Quero passar algumas coisas maravilhosas que as aulas do Mestrado em História me me trazem à mente, nesse momento em que também faço versos e analiso casos.

Às vezes não se mexe na própria vida e transfere-se essa iniciativa para a vida do outro; arriscando um pouquinho, pode-se inaugurar uma área cerebral para o divertimento dos neurônios, iniciando novas atividades que desfoquem o problema. Mas pelo menos há atitude! E se não tiver, também, que tem? Tem o bem-estar de se identificar perfeitamente, rigidamente, repetidamente.

Houve um dia em que o poder se questionou; ele, que detinha a palavra. Para Foucault, pensar a palavra através da palavra é a objetivação através da metalíngua, a palavra reclamando de si mesma. Foucault saiu de si, separou-se do mundo, distanciou-se dele e voltou a si mesmo.

Como Renato Russo: “Vamos celebrar a estupidez humana,/a estupidez de todas as nações”, terminando por se refletir: “a estupidez de quem cantou essa canção.”

A bela forma de inversão, usar o outro para falar de si. E como é que aquele partilhante que não nomeia ninguém – pra ele o mundo é feito de universais – pode sair de seu mundo genérico para, por favor, definir-se identificar-se para a medicante de seu movimento intelectivo, para que, pelo menos, eu o possa entender?

Oras, meu caro, eu o atendo. Eu procuro entender de que são feitas essas paredes do seu labirinto. Desconfio que são de um tecido fino, às vezes vermelho rosa, às vezes azul, até transparente, por trás do qual você tenta se esconder: de mim, se não o conquistei para a partilha, de si, para não se enfrentar, dos seres invisíveis que podem te descobrir.

Eu vejo a sua sombra. Imagino de que jeito é a sua pele, do que é que você gosta. Penso como o Chico: “E à noite, para quem/ você é uma luz/ debaixo da porta?” Acompanho os seus jogos, os seus mitos. Também me divirto com eles.

Volto a ler Camões, sou a lança de Quixote. E, se fala de mim na figura de outra pessoa, eu me transporto num momento e retorno para meu papel. Vejo sua valorização sobre as mulheres e tento não me colocar no gênero, estando nele.

Ouço-o falar de mãe, e não penso em mim. Tento desembaraçar-me de me ser e, puxa vida, eu não vou desligar agora. Estou firme, olho seus olhos e é possível sorrir.

De vez, entro no rodopio da história, o furacão que eu nem imaginava existir num recortezinho da sua narrativa corrida. Quem sabe o assunto imediato nasceu aí? Cadê a lanterna pra eu caçar o assunto último?

A vida quer que eu me divirta. Quer que ria dos deslizes dos outros, alegrando-os quando se iram, se tropeçam, se arregalam. Na aula, falou-se de estruturas de prédios, cimento, construção e havia um edifício em construção que me vinha pela janela, com os andares sendo montados com armações de madeira sobre outros, com paredes de concreto preenchidas de tijolos.

O poder pastoral, tão fundante para a política, me traz a maior representação de fé que já registrei, seguida daquela da sala de milagres da igreja que acolhe os romeiros em Trindade/GO, com peças de cera esverdeada; não deixei lá meu vestido de noiva de cetim branco, de pregas cruzadas que fiz. Já não faço promessas.

A maior é a imagem de Nossa Senhora num nicho, escanteado num corredor que dá acesso às caldeiras da usina de açúcar e álcool de Delta/MG, onde se chega após várias escadas verticais, 90 graus de inclinação, a uns 45 graus de calor. Ali a fé era mais fácil de ser vista.

Calor à tarde, temos sono. O culto fálico nas cerimônias gregas. Compreendemos as estruturas que nos servem de base, nossos símbolos são os mesmos, muito mais complicados que o imaginário, nossos mitos do tarrafeiro e da sacerdotisa.

O homem da pesca passava os dias tecendo redes, a sua e a dos outros. Trançava a linha de nylon em losangos belos, maleáveis. Um trançado de macramé, uma rotina no tamanho dos pontos, um ponto dependendo do outro. O tamanho da urdidura conforme ao peixe que se quer pegar.

Era uma vez um tarrafeiro confuso, cheio de preocupações com o seu mundo, mas umas preocupações que ele tecia em fio sintético, desses que não esticam, quanto mais se puxe. Assim, as tramas que envolveriam os peixes não se expandiam quando seus dedos inchavam e quase não havia como perpassar a grande agulha, espécie de forquilha na qual também se enrolava a linha de pesca, de grossura também adequada ao esforço do peixe, pra cada tamanho da urdidura losangular. Trançava circularmente.

O oráculo das conchas, o oco silêncio dos caracóis, o colar de sementes entremeado com vértebra da espinha pisciana marinha, pêga na praia e presenteada pelo turista baiano de gíria paulista braba, dessas de programa humorístico. Gente, então lá se fala assim mesmo? Objetos, sentimento e magia na minha singularidade existencial.

Você vive fazendo redes que nunca ficam prontas, não têm nó na primeira carreira. Eu desisto de servir a alguém e continuo cedendo a inúmeras vontades alheias. A ética do favor impagável. As relações personalistas na esfera pública. Estamos armadilhados e padronizados, existências milenares com ações recorrentes, discursos incompletos – somente os emissores significam.

*Vânia Dantas
Filósofa Clínica
Uberlândia/MG

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