O poeta americano Walt Whitman (1819-1892) foi o poeta do hoje. Nem o passado lamuriento dos saudosistas, nem o futuro idealizado dos visionários. Para Whitman, nada era melhor que o presente — e para fisgar o fogo do presente, ele julgava, era preciso escrever em estado de máxima liberdade. Liberdade que expressou em seus versos livres, sinuosos e intermináveis.
Entre a herança fervorosa do
romantismo e as aspirações do modernismo, Whitman fez de sua poesia uma
encruzilhada. Um laboratório no qual a vida, com suas complicações e grandezas,
foi o único objeto. Cento e cinqüenta anos depois de publicado, seu livro mais
importante, “Folhas de relva”, de 1855, recebe, enfim, uma tradução digna (de
Rodrigo Garcia Lopes) no Brasil.
Como cidadão, Walt Whitman foi um
libertário, que defendeu os direitos da mulher, o fim da escravatura e a
prática do amor livre. Esta visão antidogmática da vida caracteriza também sua
poesia. Enquanto ele viveu, “Folhas de relva” teve várias edições, ampliadas,
modificadas, num esforço nunca completo para fisgar o que lhe escapava. Poeta
da grandeza, ele teve uma visão vital e nada sagrada, imperfeita, da
literatura. Sabia que, ao perseguir a grandeza, é com as migalhas que se fica.
A publicação de “Folhas de relva”
valeu a Walt Whitman a perda do emprego, um posto burocrático no Ministério do
Interior. Horrorizado com seus versos, seu chefe achou que Whitman não se
condizia com a imagem do bom burocrata de Estado. E, na verdade, não deixava de
estar certo.
Influência da pintura e também
da filosofia
Poeta do presente, Whitman foi
também o poeta da vastidão. As imensas distâncias entre as estrelas e
constelações, as formas infinitas do espaço, a força devastadora do vácuo que,
no cosmos, esmigalha e anula nossas precárias noções de tempo e de ordem,
foram, sempre, suas referências. Diante delas, a poesia se tornava só um
soluçar.
Whitman foi, certamente, um
místico, pois entendia o homem e suas construções (entre elas, a própria
literatura) como miseráveis fragmentos de uma grande tela que ninguém consegue
ver. Dizer que foi um poeta religioso, contudo, é o mesmo que afirmar, por
exemplo, que Machado, porque desmascarou as sutilezas que formam a
sensibilidade humana, não foi um escritor, mas um psicólogo.
A pintura, com suas abstrações
silenciosas, e a filosofia, em particular o pensamento dialético de Hegel,
também o influenciaram. Tudo o influenciava, e foi na via dessa abertura para a
existência e suas variações que ele chegou a seus versos.
“Folhas de relva” é um poema da
transfiguração, que, no entanto, em vez de levar ao novo, conduz de volta ao
mesmo — só que um mesmo que, apesar disso, choca, porque nele se vê o que não
se pode habitualmente ver. “Chamas e éter acelerando minhas veias/ Ponta
traiçoeira de mim chegando e se juntando para ajudá-los,/ Minha carne e meu
sangue disparando raios, até atingir algo nada diferente de mim”, Whitman
escreve.
E mais à frente, num verso que
sintetiza sua atitude de poeta: “Espremendo a teta do meu coração até alcançar
a gota ali retida/ Folgando comigo, não aceitando não como resposta/ Tirando o
meu melhor...”. Diz-se, porque escreveu versos obstinados, cheios de fé, que
Whitman foi o poeta do otimismo; mas isso não combina, ao menos, com a noção
fácil de otimismo que temos hoje. Otimismo? Whitman escrevia para voltar a si —
como alguém que cheira um pano encharcado em álcool para acordar de um desmaio.
Não é uma questão de fé, mas de sobrevivência.
Depois de recordar o hábito de
Whitman de anotar comentários pessoais à margem do que lia, o prefaciador e
tradutor Rodrigo Garcia Lopes rememora um diálogo silencioso entre Whitman e
outro grande poeta, John Keats. Whitman deparou, um dia, com uma idéia
fundamental de Keats: “Um poeta é a coisa mais antipoética de todas que existem
no mundo, porque ele não tem identidade”. À margem desta frase, em resposta,
ele anotou: “O grande poeta absorve a identidade de outros, e a experiência de
outros, e elas são definitivas nele ou dele; mas ele as percebe todas através
da pressão sobre si mesmo”.
Pressão sobre si, resultado de
uma sensibilidade exposta, uma sensibilidade em fratura: era assim que Whitman
concebia a poesia, como uma invasão do mundo sobre o sujeito. Uma ampliação
radical de sua existência, não por crescimento, mas por vazamento e por explosão
— o poeta atravessado pelas coisas vivas, devassado pelo presente, a alma
esticada a seu máximo, como a pele de um tambor, fazendo soar, através das
palavras, a pressão (e o fascínio) que o real exerce.
O presente como a grande
dádiva
Whitman foi, ainda, o poeta da
aceitação, pois levou para a poesia a fórmula que o místico Henry Thoreau assim
formulou: “Um mundo de cada vez”. Por duvidar da consistência das
individualidades, por ver os homens transpassados pela energia cósmica e por forças
que sempre lhe escapam, ele pensava, o presente é a grande dádiva. No presente,
está tudo.
Encontramos em seus versos, por
fim, uma serenidade, que vem justamente desta aceitação. “Tudo no universo está
em ordem... tudo está em seu lugar,/ O que chegou está em seu lugar, e o que
espera, espera em seu lugar;/ (...)/ O diverso não será mais diverso, e sim vai
fluir e se unir... eles se unem agora”, ele escreve.
Uma leitura medrosa concluirá,
daí, que Whitman foi um poeta do regresso, apenas um conservador. Nada mais
distante da estabilidade dos conservadores, nada mais longe de suas gorduras e
seus ritos preguiçosos, porém, que a poesia de Whitman. “Folhas de relva” é,
nesse aspecto, um livro que não se pode ler, senão, em estado de entrega.
Se Whitman afirma que o universo
está em ordem, é porque acreditava que nos cabe aceitar cada coisa e cada ser
como ele é, cada sentimento, cada atitude, cada pequeno evento como parte de um
grande todo. Tudo isso, porém, está muito além do dogma, ou de qualquer interesse
pelas verdades fechadas. Verdades? Para Whitman o que importava era a
experiência gaguejante, incompleta, tonta — como seus poemas. Era a folha de
relva, a balançar ao vento, frágil e com um destino breve e, no entanto, cheia
de grandeza.
*José Castello
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