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Não sei quantas almas tenho*

Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é, Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou. Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser. O que segue não prevendo, O que passou a esquecer. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo: “Fui eu?” Deus sabe, porque o escreveu. *Fernando Pessoas

O segredo*

“A um ele confia uma coisa e confia outra coisa a outro, certificando-se de que eles jamais irão comunicar-se entre si.” Elias Canetti Vivemos num mundo onde o segredo deixou de existir, em que tudo o que é pensado, antecipadamente, já é sabido. O segredo é o lugar em que o indivíduo se submete à verdade daquele que sabe calar. Nas ditaduras o segredo é a vitalidade dos que sabem mandar, e principalmente dos que temem por algo que foge do seu controle. As massas alardeiam, o poder consente o seu silêncio em fúria. O poder mata o Outro com seu segredo, a massa divulga e joga o corpo aos leões. Todo segredo pode ser para o Bem e para o Mal. O calar dos que recebem ordens é fruto do bom entendimento entre o que sabe mandar e o que sabe seguir as regras de forma ordeira. Esse fantasma jamais deixou de existir. As ditaduras de Direita e de Esquerda são o espelho dos que entendem o calar. Canetti demonstrou que o mais profundo dos segredos “é o que se desenvolve no interior do

Fragmentos Filosóficos, Delirantes, Criativos*

"(...) o que descobrimos no transcorrer de uma vida criativa é uma série infinita de rupturas provisórias. Nessa viagem não há ponto de chegada, porque é uma jornada para dentro da alma." "O processo criativo é um caminho espiritual. E essa aventura fala de nós, de nosso ser mais profundo, do criador que existe em cada um de nós, da originalidade, que não significa o que todos nós sabemos, mas que é plena e originalmente nós." "Essa misteriosa entrega, a criativa surpresa que nos liberta e nos abre para o mundo, permite que algo brote espontaneamente. Se formos transparentes, se nada tivermos a esconder, o abismo entre a linguagem e o Ser desaparece. Então a Musa pode se manifestar." "Ao se entregar às formas arquetípicas latentes na pedra, Michelangelo não produziu estátuas, mas libertou-as. Ele seguiu conscientemente a ideia platônica de que o aprendizado é na verdade memória." "Sem divertimento, o aprendizado e a evoluç

Dispersos*

Não havíamos marcado hora, não havíamos marcado lugar. E deu-se este encontro. Andávamos pelas ruas da cidade tão felizes. Por fim não sabíamos mais se andávamos ou se voávamos... Corria um vento tão gostoso. A brisa balançava os cabelos dela para lá e para cá. E eu ficava com ciúme do vento e dos carinhos que ele fazia nos cabelos dela. Os estranhos eram apenas os amigos que nós ainda não conhecíamos. Nossos olhinhos diziam que todo mundo gostaria de se mudar para um lugar mágico Corríamos e soprávamos o vento andando por aí. Ríamos dos relâmpagos e dos trovões. E bebíamos as águas das tempestades. Quando nos dávamos conta do lugar onde estávamos, já tínhamos ido embora. A meia noite fechou seus olhinhos e na madrugada o canto e a dança dela impediram que eu fosse embora. E descobrimos que a palavra amor andava meio vazia, tinha tão pouca gente dentro dela.... *José Mayer Filósofo. Livreiro. Poeta. Estudante na Casa da Filosofia Clínica Porto Alegr

Poema de Sete Faces*

Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. *Carlos Drummond de Andrade

A escuta das palavras*

                                           A palavra, em deslocamento por seus muitos territórios, também busca uma legibilidade para sua escuta escutando-se. Aptidão rara em meio as ditaduras da semiose verbal. Ao conviver sempre no mesmo lugar, ainda que em línguas diferentes, é excepcional vivenciar as dialéticas da aventura.      Em um mundo apropriadamente imperfeito, pode ser indizível, ao dicionário conhecido, encontrar o melhor para si. Essa suspeita se insinua nas possibilidades do instante perfeito nas entrelinhas da imperfeição. Essa transgressão da zona areia movediça de conforto existencial, se aproxima de um mundo razoável e suas contradições. Assim pode acolher e dialogar com a mutante medida de todas as coisas em cada um.   Ao destacar o viés dessas poéticas da irreflexão, se esboça uma negação de que tudo já foi dito, pensado, tentado. Nele um espaço desconhecido se abre como proposta. Talvez a escola, ao ensinar a ler e escrever, também pudesse incl

Soneto de Fidelidade*

De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. *Vinicius de Moraes