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Fragmentos Filosóficos, Delirantes*


"(...) O tempo, como a fortuna, é inconstante, disse o revisor, consciente da estupidez da frase. Não respondeu o empregado, a mulher não respondeu, que essa é a mais prudente atitude a tomar perante as sentenças definitivas, ouvir e calar, esperando que o mesmo tempo as faça cair em pedaços, não sendo raro que as torne mais definitivas ainda, como as dos gregos e latinos, finalmente também condenadas ao esquecimento quando o tempo tiver passado todo"

"Raimundo Silva aprendeu a arte de fazer flutuar ideias vagas, como nuvens que se mantém separadas, e sabe mesmo soprar qualquer uma que se aproxime demasiado, o que é preciso é que não se encostem umas às outras criando um contínuo ou, o que ainda seria pior, se há electricidade na atmosfera mental, com a resultante tormenta de coriscos e trovoada (...)"

"(...) averiguar o que, não tendo nenhuma importância, deu vida, lugar e ocasião à importância que passou a ter o que dizemos ser importante"

"(...) nesse momento, considerando sobre os desencontros entre a palavra e o sentido, a si mesmo se observou (...) vivo em Lisboa desde que nasci e nunca me tinha lembrado de vir ver, com os meus próprios olhos, coisas que estão em livros, coisas que algumas vezes olhei e tornei a olhar, sem ver (...)"

"(...) se quisermos acreditar nos insuficientes olhos com que viemos ao mundo (...)"

"(...) não é tão raro assim revelarem-se nos sonhos grandes mistérios (...)"

"Quem não sabe deve perguntar, ter essa humildade, e uma precaução tão elementar deveria tê-la sempre presente o revisor, tanto mais que nem sequer precisaria sair de sua casa, do escritório onde agora está trabalhando, pois não faltam aqui os livros que o elucidariam se tivesse tido a sageza e prudência de não acreditar cegamente naquilo que supõe saber, que daí é que vêm os enganos piores, não da ignorância"

"Nestas ajoujadas estantes, milhares e milhares de páginas esperam a cintilação duma curiosidade inicial ou a firme luz que é sempre a dúvida que busca o seu próprio esclarecimento"

*José Saramago in "História do cerco de Lisboa". Ed. Folha de São Paulo. 2003.   

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