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Quem? O sentido da Autogenia***

Autogenia. Uma aproximação da questão: “quem é esta pessoa” 

Autogenia  não é uma palavra corrente, na filosofia, na clínica e, pouco usada nas ciências,  daí ser prudente defini-la  para os propósitos deste texto. 

A palavra grega “auto” traz o sentido daquilo que é próprio e, “genos”- também do grego – o de origem ou nascimento. De maneira simples, autogenia pode ser entendida como a qualidade daquilo originado por si mesmo, independente de força ou recurso externo a si. 

E como essa palavra autogenia participa no mundo  da filosofia clínica? 

Autogenia pode ser considerado como um retrato existencial desta pessoa à frente do clínico. Como ela se constituiu, se tornou o que é.  Ela se vincula a uma idéia de totalidade da pessoa, próxima de certa forma da noção de personalidade ou de caráter usado pelas psicologias e por algumas psicanálises. Na filosofia clínica ela deve ser resultado de um minucioso processo de construção, sempre vivo e reconstruído. Autogenia se aproxima de uma questão muito esquecida e fundamental da clínica: quem é essa pessoa que está aí? Questão filosófica vivida na clínica.  

Heidegger ao tomar como tema o quem, escreveu: “é cada vez um eu e não algo distinto” (Ser eTempo pg 333). “Cada vez um eu”, portanto, um “eu”, um alguém que muda a cada vez que é observado e simultaneamente “não algo distinto”, isto é, um algo ou alguém que não é diferente de si, que é o mesmo. Nessa tensão entre mudança (Heráclito) e permanência (Parmênides) estaria o lugar para alguma consideração da questão quem é essa pessoa, esse ser-aí, à frente . 

Quem? “Cada vez um eu e não algo distinto”. 

Mas o que é“eu”? É uma palavra que se refere a quem fala, designa a pessoa que enuncia. Mas não a descreve, não dá qualquer predicado dela.  Na gramática da língua, “eu” é um pronome, por definição, algo que vai em direção a um nome, mas não nomeia uma coisa. Pronome pessoal “eu” só indica a pessoa que fala, portanto, é (só?) um fenômeno de linguagem. “Eu” se funda, se re-inaugura em cada fala. Em cada uma, na sua, na minha, na dele. “Eu” existe através da fala da pessoa que a profere. E, algo – o “eu”- fala por intermédio da pessoa. Esse “algo-eu” que fala é alguém.  Alguém fala: um “eu”. Quem? 

 No âmbito existencial o “eu”, na vivência de uma pessoa, é sempre presente para si.   E também um observador eterno de si, afinal  sou sempre eu que vejo, penso, percebo, sinto   “a mim”, “a mim mesmo”. Então há algo na base do “eu”. O “eu”, entretanto, não é uma coisa no mundo, um ente. E ao mesmo tempo há um fenômeno “eu” que existe para mim enquanto eu sou consciente de mim. Então “eu” serve para eu me referir a mim. O que é  alguém e não se refere a mim não é “eu”, é “outro”. Eu” é a palavra que  indica aquele q designa a si na fala. 

Quando alguém usa “eu” já traz também pressuposto alguém diante de si, um tu ou um você.  E pressupõe também um “eu” desse interlocutor. Eu compreendo quando uma outra pessoa fala “eu”, eu sei  que ela se refere ao “eu” dela, o “eu” do “outro” que é ela, para mim. Isso, essa compreensão, é condição para a clínica. Ela e eu, cada um a partir de si, sabe que há um “eu” meu e um ”eu” dela. Curioso: sabe-se, mas é um saber de natureza frágil, meio por aproximação. Não há um saber certo, firme, fundado, nisto que é tão comum, corriqueiro, vivido por qualquer um. Um saber-sabido-desconhecido. 

Quem? Essa pessoa que fala cria um mundo a partir de si. Cada “eu” pode ser definido razoavelmente  como um centro de experiências de mundos vividos por uma pessoa e, um centro de perspectivas de mundos seus a viver. O clínico – este “eu” que escuta – deixa este mundo do outro “eu” se estabelecer próximo a si. Talvez o lugar propriamente em que esse mundo do outro “eu” se estabelece é na interseção  entre estes dois “eus”. A clínica se dá entre. 

A pessoa não é um conteúdo do mundo que cria, ela é a referência, a base, o ponto de apoio. Mesmo frágil.  Esse “eu” fala algo, aqui e agora para um outro “eu” aqui e agora, que escuta, cada qual numa posição insubstituível. A pessoa que traz o seu mundo é um limite desse seu mundo, não está dentro nem fora desse mundo. Não está dentro porque está aqui “fora” falando e não está fora porque fala de “dentro” de si, a partir de seu “eu”. Como um “eu – criador” está no limiar, entre o dentro e o fora [como notou  Wittgenstein]. No mundo existencial, não há  sujeito, nem objeto. Não há objetivação possível do sujeito. 

Quem?  A pessoa não é somente esse “eu” que fala: ela se compõe de uma corporeidade. Ela também é um corpo. Ela existe também num âmbito material. E cada pessoa tem um corpo diferente da outra.  Se ela e só ela pode se identificar com o corpo que ela habita, então este corpo é seu, só seu: este corpo é o lugar do seu “eu”. Compõe o “eu”. E, alem disso, o meu corpo, desse outro que sou para ela, pode ser entendido por ela como “eu”.  Em outras palavras, do ponto de vista espacial, o corpo como critério de identidade do “eu” parece dar uma resposta mais firme. Ao menos para um universo cultural tomado predominantemente  por critérios materiais A pessoa parece poder ser identificada pelo seu corpo. E assim se faz socialmente. A sua identidade é atestada pelo reconhecimento do desenho de seus dedos. A convicção inquestionável da singularidade dos traços corporais está aqui pressuposta. 

O corpo ainda responde a um outro critério importante de identidade da pessoa que é a possibilidade de ser reconhecível pelos outros. Este corpo que contém um “eu” pode ser percebido em dois momentos diferentes  e ser considerado ainda como a mesma pessoa. Há uma permanência, ainda que provisória da fisionomia da pessoa, por exemplo. A pessoa passa a ser reconhecida por aquele rosto ou por aquele corpo que trans-porta esse “eu”. O curioso é q muitas vezes, encontra-se  alguém que se reconhece não por seus traços físicos, mas pelo seu jeitão, por uma expressão, por um sorriso, pela voz, pelo seus modos de se movimentar, um modo de olhar. Pela voz.  Mas de qualquer forma o corpo como critério de identidade parece funcionar razoavelmente, para as necessidades das relações sociais.  Mas… 

Quem é essa pessoa? “Cada vez um eu, não algo distinto”. 

 O mesmo algo, aquilo que não é diferente, que parece repetir um conhecimento que já se teve. Nesse lugar incomum, difícil de perceber, que é a cada vez de um modo e que permanece com alguma propriedade comum, parecida. Daqui não se pode falar que é o mesmo – já que de cada vez é um “eu” – e que ao mesmo tempo mantém alguma coisa que lhe é própria, e pela qual pode ser reconhecida,  o corpo. 

Quando eu me refiro ao “meu” corpo eu tenho uma referência de um mundo em que há outros corpos.  Foi na minha relação com outro corpo q eu pude constituir a idéia de um corpo meu. Este movimento de me constituir como um corpo diferente, me possibilita e me exige ver a mim quase como um terceiro, isto é, de “eu” através da percepção de um “outro”. Mas como sou “eu” que indico a mim mesmo esse “eu”, há um movimento reflexivo, quer dizer, há um desvio da minha direção inicial – indo em direção ao outro – que me faz voltar para trás, me faz recair em mim [esse “mim” é um pronome obliquo reflexivo da 1ª pessoa do singular- refere-se a “eu”, mas não é “eu”]. Há quase um olhar em terceira pessoa para o meu “eu”, mas um olhar que também não se realiza plenamente, ou pelo menos que me dá pouca possibilidade de alteridade (externalidade?) desse “eu”, que me permitisse perceber esse “eu” como a um estranho.   Mas isso não se realiza porque o “eu” permanece em meu corpo e me percebo como uma única pessoa. E sou eu que digo “eu”. 

A reflexão do parágrafo anterior está no campo do pensamento clínico, tem sua referência  no âmbito existencial e não epistemológico. 

Quem? A noção de pessoa se constitui a partir dos predicados que se atribui a ela.  Na cultura ocidental contemporânea os predicados mais aceitos são os de que uma pessoa é composta de um aspecto físico e outro espiritual ou psíquico. Quando se está frente ao corpo de alguém morto, por exemplo,  há algo da pessoa presente e algo ausente. A pessoa não está mais ali, só seu corpo. O corpo, uma coisa no mundo, mas ainda como memória do ausente.  A pessoa na sua inteireza material-psíquica tem como sua natureza, portanto, o  estar presente, ser presença. Mas isso não a predica, não fala nada dela. 

Quando se busca a identidade da pessoa –  ela como idêntica a ela mesma – surge de novo a dificuldade. Cada pessoa é um “eu” distinto num corpo distinto. O que distingue um corpo de outro é sua aparência física, seu volume, suas formas que se conhecem a partir da percepção. Mas como distinguir as características psíquicas de uma pessoa? 

Na clínica a pessoa se encontra numa situação em que fala e escuta  e é ouvida por outra pessoa que também fala. Nessa circunstância ela usa a língua e vários recursos de linguagem para expor para alguém, de algum modo presente, as suas experiências. Uma situação de interlocução que tem valor de instituição de acontecimento. Está em cena, através de um discurso, corpo e psique frente a corpo e psique, alma, carne e osso, ainda que mediada por aparelhos (plataforma, internet, celular) trazendo a sua experiência do mundo, sua perspectiva, q não pode ser substituída. 

Quando eu digo “eu estou feliz” não é a mesma coisa do que se eu dissesse “a pessoa q está falando está contente”. Há um ponto de referência diferente: quando eu digo “eu” estou dando o ponto de referência, tem um certo peso existencial,  no outro caso eu sou descrito como uma 3ª pessoa, quase não é uma pessoa.  Quem é essa pessoa? Como predicá-la? Como estabelecer suas propriedades, o que lhe é próprio? 

Mas isso ainda está muito vago. O que é isso – o “eu” – que eu sei q existe porque vivo em mim e percebo viver no outro?  Eu sei que o que vivo em mim é diferente do que ele vive nele. Então há algo de próprio neste “eu” meu e no “eu” dele, do outro. Há uma diferença entre ele e eu.  Há um próprio a mim e um próprio a ele. Como se produz isso que é próprio a cada um? Como se deram essas Autogenias? 

*Continua (...)

**Dr. Claudio Fernandes

Filósofo. Filósofo Clínico. Escritor. Livre Pensador.

São Paulo/SP

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