Pular para o conteúdo principal

Especulações sobre loucura alguma*

 

"Não sabia estar em transição ? Desejava algo melhor do que transformar-se ? Se algum ato seu for doentio, lembre-se de que a doença é o meio de que o organismo se serve para se libertar de um corpo estranho"

                                                           Rainer Maria Rilke                  

Uma fenomenologia da loucura costuma apresentar-se a partir de saberes pré-históricos da alma humana. Um lugar privilegiado onde as origens primitivas vão (re) significando-se, a partir do ser em instantes de não-ser. Por essas crises anuncia-se a hora de mudar, constituindo tempos e momentos de desconstrução acelerada dos antigos endereços existenciais. 

Decifrar os enigmas dessa natureza de aparência incompreensível escapa de forma inteligente às tentativas de diagnóstico da tradição. Subjetividades em processo de mostrar e esconder, revelando antíteses com contextos adversos a sua expressividade. As imagens da desestruturação costumam refletir um sujeito desconhecido para si mesmo. Uma espécie exilada na própria casa. Um estranho percorrendo-se por inteiro sem ter para onde ir.     

Realizar aproximações com esses universos, em suas instâncias mais profundas, destina-se ao melhor do ser terapeuta, Por essa habilidade em qualificar interseções com a representação dos delírios, pode-se iniciar uma caminhada compartilhada pela estruturação do outro. Aparentes absurdos evidenciam trajetos à compreensão da desrazão. Uma mostra por inteiro ao olhar em recusas de classificação do Filósofo Clínico. 

Michel Foucault refere: "Mas o louco tem seus bons momentos, ou melhor, ele é, em sua loucura, o próprio momento da verdade; insensato, tem mais senso comum e desatina menos que os atinados. Do fundo de sua loucura atinada, isto é, do alto de sua sabedoria louca, sabe muito bem que sua alma foi atingida. E renovando, em sentido contrário, o paradoxo de Epimênides, diz que está louco até o âmago de sua alma e, dizendo isso, enuncia a verdade" (Historia da Loucura, 2000). 

Essa momentânea inaptidão do sujeito em acessar as suas próprias estruturas pode constituir-se a partir de uma estranheza para com seus anteriores referenciais de vida. Um afastamento em direção ao desconhecido de si mesmo. 

Quando se trata de loucura, a medicina tradicional conta com um acanhado instrumental para elaborar diagnósticos. Nesse sentido busca subsídios com sua irmã gêmea: a normalidade. Lugar de onde pretende controlar esses fenômenos da condição humana em seus instantes mutantes. 

David Cooper ensina: "(...) a intervenção psiquiátrica leva a cabo, efetivamente, uma fragmentação da união paradoxal da loucura; primeiro, a alegria é destruída pelo tratamento e, depois, até o desespero é aniquilado, deixando o 'bom resultado' ótimo da psiquiatria - pessoa alguma" (A Linguagem da Loucura, 1983). 

Nesses momentos, a abordagem clínica pode significar a diferença entre a emancipação do partilhante ou sua classificação e internamento. O ser sujeito da própria loucura se faz essencial para as (re) elaborações em fase de antítese na relação com suas antigas conformações existenciais.  

Existem muitas semioses para a singularidade do sofrer. A interações, com esses mundos, se faz cúmplice ao conhecer de um outro a se revelar em linguagem própria, muitas vezes em desconexão com a hermenêutica do especialista. As dificuldades costumam distanciar a pessoa de si e daqueles a constituírem seu meio. Uma natureza a se mostrar estranha as anteriores convivências. Continentes tão vastos da história de vida da pessoa costumam ser deixados de lado pela anamnese dos manuais diagnósticos. Pretensão de um olhar privilegiado em detrimento do lugar onde as tormentas se constituem. 

Os significados atribuídos ao ser desse não-ser em desdobramentos de crise, constituem vias de acesso ao entendimento do ininteligível de um mundo sem fronteiras, num trânsito livre pelos conteúdos articulados na pessoa do louco. A escuta fenomenológica poderá indicar padrões e indícios à melhor insanidade. Uma dialética a revelar-se na trama estrutural em cumplicidade com suas buscas, até então sufocadas e aquém de suas melhores possibilidades. 

Investigando as circunstâncias de cada sujeito, a partir de suas representações e contextos de vida, pode-se conceder mais legitimidade ao fazer clínico. Uma compreensão interativa com essas singulares linguagens. São momentos onde a vida se encontra em buscas  para além de suas anterioridades. Um sujeito enfraquecendo antecedentes formas de viver através do fortalecimento das dores da alma. Etapas de uma só movimentação desestruturante. A partir daí, os novos paradigmas podem acontecer. 

As formas do mito pelo compartilhar da palavra em interseção, pode constituir, através de sua simbologia e rituais, uma aproximação com a magia da loucura. Agregando-se as representações em transformação na pessoa do louco, pode-se qualificar seu existir tendo como ponto de partida as próprias incongruências da alma. Desocultar a simbologia dessas linguagens utilizadas para interagir com a realidade, faz-se possibilidade de integração do sujeito consigo mesmo, legitimando-se com a cumplicidade do olhar em perspectiva do Filósofo Clínico. 

Para Schopenhauer: "(...) o gênio vê tudo acima de qualquer medida, vê em toda parte o extremo, e justamente por isso seu comportamento incorre no extremo: ele não acerta na medida correta, falta-lhe placidez, e suas ações, pontuadas por extravagâncias, assemelham-se à loucura" (Metafísica do Belo, 2001). 

Os trajetos desse indizível podem ser descortinados pelas trajetórias da interseção, via partilhada para aproximações com as incógnitas do Partilhante. A representação desses absurdos contidos no ser de cada um podem (re)significar-se a partir da construção compartilhada. Terapeutas, em muitos momentos, são tradutores das vontades dos destituídos de condição ou interesse para com o mundo normalizado pela realidade. 

Nesse sentido, o referencial simbólico pode auxiliar nessas mediações com as estruturas da loucura. São muitas as formas de sua expressão: através do sonhar, nas formas do mito, pelas ilusões de um real devaneio ou por meio da fé em seus incontáveis fenômenos. Aspectos de uma magia incansável em tentar dizer-se em linguagem própria, quase sempre sufocada pelas hermenêuticas distantes de suas originalidades. 

Ernst Cassirer assim evidencia as linguagens da irrealidade: "(...) onde nós vemos apenas um mero signo e uma semelhança do signo, para a consciência mágica, está presente, ao contrário, o próprio objeto" (A Filosofia das Formas Simbólicas, 2004). 

A prática de consultório tem mostrado a loucura como um processo de (re)significação da pessoa. Uma revolução num lugar onde a natureza se fortalece por não mais suportar desajustes entre suas subjetividades e as representações estabelecidas por regras distantes de si mesma. Nessa etapa de desenvolvimento, o Partilhante precisa de apoio amplo para experimentar-se em buscas por um viver melhor. As tristezas em suas múltiplas formas costumam ser coadjuvantes em um processo maior de transformação. 

Nesse sentido a loucura se faz libertação. Uma fenomenologia em busca por inadiáveis mudanças. Desatar os nós das prisões existenciais aparece como desafio significativo ao fazer do Filósofo Clínico, esse cúmplice em caminhadas por estradas de se descobrir. São instantes a constituir uma revolução permanente dos meios de produção da própria loucura. Podendo desenvolver-se pelo decifrar dos enigmas, elaborando expressividades para o novo a se antecipar. 

Gaston Bachelard poetiza em sua Filosofia: "E que vem a ser um belo poema senão uma loucura retocada ? Um pouco de ordem poética imposta às imagens aberrantes ? A manutenção de uma inteligente sobriedade no emprego - ainda assim intenso - das drogas imaginárias. Os devaneios, os loucos devaneios, conduzem a vida" (A Poética do Devaneio, 2001). 

Pessoas normais fazem uma força enorme para sobreviver numa realidade que não conseguem modificar. Pagam impostos, pedágios, aluguéis e financiamentos, cuidando das rendas, automóveis, roupas e sapatos. Investindo muito esforço e habilidade para afastar antigos sonhos de mudar o mundo e melhorar as coisas por aqui. Muitos até, resolvem-se nas meses de bar, lugar da revolução maior: escolher a melhor bebida para embriagar os embates que irão modificar coisa nenhuma! 

Enxergar as peculiaridades a partir dessa crise da pessoa pode constituir instrumento valioso de apoio à atividade clínica do Filósofo, o qual, a partir dos referenciais de especificidade do sujeito, pode aproximar-se com a insanidade em buscas de vir-a-ser. Loucura é a vida em busca de melhores dias, uma incerta percepção, desamparada em frágeis pontos de partida, apresentando-se em contradição com antigos endereços existenciais e formas de viver.  

Acessar essas estruturas lógicas constituintes da desrazão, se faz um desafio significativo ao ser Filósofo Clínico. Interessado em desvendar-se com esses encontros, segue interrogando-se com seus outros em interseção. 

Ao final retomamos a fragilidade de nossa razão para dizer de seus contraditórios meios de expressividade, antecipados como especulação e tentativas de aproximação com as formas de um saber que ainda não sabe. Existindo na pessoa do louco, se constitui num ser em intimidade com o mundo dos deuses. Insensato em transformar a clarividência de seus sonhos em loucura alguma. 

*Hélio Strassburger in "Filosofia Clínica - Poéticas da Singularidade". Ed. E-Papers/RJ. 2007.      

Comentários

Visitas