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Saber ouvir é quase conversar em silêncio*

Certa vez estava fazendo uma palestra e, com o canto do olho, percebi uma movimentação estranha na platéia do auditório. Não consegui prestar muita atenção porque estava focado na minha fala, mas deu pra ver que era restrito a um pequeno grupo de pessoas, especialmente uma criatura que não parava de se movimentar.

Quase interrompi meu discurso para solicitar que a pessoa ficasse quieta, mas por sorte, ou por uma apreciação mais demorada, constatei que se tratava de um grupo de surdos que estavam acompanhando minha palestra através de um tradutor, que  utilizava  gestos e sinais para se comunicar na Linguagem Brasileira de Sinais (Libras). Por pouco não cometi uma desfeita com aquela comunidade que ali estava por um admirável projeto de inclusão social.

Nossa vida é muito barulhenta. A cidade faz barulho. As pessoas fazem barulho. Ouvimos alaridos, buzinas, motores, tambores, rádios, gritos, choros, sirenes. Ao que parece, já nos adaptamos no meio da zoeira. Só que o barulho faz com que a gente não se ouça direito. O barulho nos tornou meio surdos e, para que conseguíssemos nos entender melhor, começamos a falar mais alto, fazer gestos e, para culminar, complementamos com leitura labial, agora prejudicada pelo uso de máscaras.

Tivemos que aprender a falar com as mãos e agora estamos dependentes, não sabemos mais nos comunicar sem ficar gesticulando. Tente conversar com as mãos nos bolsos e sentirá a dificuldade de expressão. É como se algo estivesse lhe trancando as cordas vocais e o pensamento.

De certa forma, perdemos parcialmente a capacidade de escutar com os ouvidos. Falamos com as mãos porque ouvimos também com os olhos. Os olhos são nossos ouvidos acessórios, resgatam aquilo que não conseguimos escutar direito. Mas não é só por isso que gesticulamos ao falar.

As pessoas só ouvem o que estão a fim de escutar. Ouvir com atenção é uma atividade rara, as pessoas concentram a maior parte de sua atenção naquilo que estão pensando. Enquanto um fala, o outro, ao invés de escutar, já está pensando no que vai responder ou comentar.

Vivemos num momento de riqueza de informação, pobreza de comunicação e carência de atenção. Diante disso, usamos o recurso de pantomimas com as mãos com o intuito de chamar a atenção do ouvinte aéreo em seus pensamentos. Existem ainda os que falam tocando o outro para que a atenção alheia não se disperse. Estes últimos são os que ironicamente chamamos de chatos.

Escutar é um ato primitivo de amor, em que a pessoa se entrega à palavra de outro, tornando-se acessível e vulnerável àquela palavra. É preciso aprender a ouvir mais com o coração que com os ouvidos.  Ouvir as palavras entreditas, os olhos, os gestos, os passos, o silêncio. Saber ouvir é uma virtude, querer ouvir é amor.

Saber ouvir é uma arte, mas não é para todos. Uns não escutam porque não podem, outros não ouvem porque estão em sintonia diferente e outros mais, simplesmente porque não estão interessados em ouvir.  Saber ouvir pode ser até melhor que saber falar. Saber ouvir é quase conversar em silêncio.

Escutamos metade do que nos é dito      -       50%

Ouvimos metade do que escutamos        -       25%

Entendemos metade do que ouvimos      -       12,5%

Lembramos metade do que entendemos -      6,25%   

*Dr. Ildo Meyer

Médico. Escritor. Palestrante. Mágico. Filósofo Clínico.

Porto Alegre/RS  

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