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Viés cognitivo nas interpretações*

 

“Despertos, eles dormem”

              Heráclito 

Como seres de cognição temos muito mais chances de errar o alvo do conhecimento/verdade do que acertar. É por isso que temos que ter um pouco mais de consciência de nosso aparato cognitivo e como ele, em linhas gerais, funciona. E, ainda assim, estaremos muito mais perto do erro do que do acerto cognitivo.

E, por isso, além desse conhecimento geral sobre como funcionamos cognitivamente, temos que ter sistemas de revisão de crenças, juízos, conceitos etc. Ou seja, se queremos acertar em algo minimamente temos que trabalhar muito para isso.

É por isso que a palavra conhecimento e verdade em filosofia é um mérito, um alcance cognitivo superior. No mais das vezes, no nosso dia a dia ficamos muito longe do conhecimento ou da verdade que a filosofia procura estudar. Mas isso não é problema, pois mesmo assim damos conta de nossas vidas e conseguimos, no mais das vezes, resolver nossas questões práticas da vida.

O problema aparece quando essas falhas ocorrem no campo da pesquisa chamada científica (“pesquisa científica” já pressupõe que a ciência ou o pensamento científico é o padrão de correção e acerto da pesquisa!). E independente do campo dessa pesquisa, seja: biologia, física, química, sociologia, filosofia, etc... essas falhas são importantes.

Mas o maior cuidado ainda tem que ter aqueles que pesquisam dentro do campo das chamadas “humanidades”, pois embora a matéria-prima dessas pesquisas seja o humano ou as coisas do humano, os elementos dos quais tratam são subjetivos, fronteiriços, escorregadios e cinzas. O conhecimento e a verdade aqui são conceitos borrados e afirmar uma certeza aqui é tão problemático quanto afirmar a categoria de belo como tendo apenas uma definição.

Em todos os campos de pesquisa, sejam as áreas das ciências “naturais” ou “humanas” é importantíssimo ter sistemas de revisão dos dados, das observações, dos resultados e do próprio processo de cognição envolvido nestas pesquisas. Para evitar o subjetivismo em qualquer nível. E para isso vou descrever aqui alguns dos vieses cognitivos mais comuns dos quais todos nós no dia a dia acabamos por efetivar, mas que em um campo de pesquisa científico deve a todo custo ser revisado e ter sistemas de avaliação e correção destes vieses.

Antes, o que é um viés cognitivo? Em linhas gerais, é uma distorção de nosso pensamento ou cognição. Portanto, uma falha. E por isso deve ser evitado ou reconhecido, mais ainda, já dado como certo de que vamos ter essa distorção em algum grau. Não somos perfeitos cognitivamente e por isso que temos que ter uma forma de revisão de nossa cognição.

No livro "O Andar do Bêbado: como o acaso determina nossas vidas", Leonard Mlodinow inicia o livro assim:

“Alguns anos atrás, um homem ganhou na loteria nacional espanhola com um bilhete que terminava com o número 48. Orgulhoso por seu “feito”, ele revelou a teoria que o levou à fortuna. “Sonhei com o número 7 por 7 noites consecutivas”, disse, “e 7 vezes 7 é 48.”

No entanto, 7 vezes 7 é 49! O que acontece, diz o autor, é que

“[…] todos nós criamos um olhar próprio sobre o mundo e o empregamos para filtrar e processar nossas percepções, extraindo significados do oceano de dados que nos inunda diariamente. E cometemos erros que, ainda que menos óbvios, são tão significativos quanto esse”.

O fato é que nossa intuição humana é falha na maior parte dos casos, mas isso não interfere nosso viver cotidiano. Mas em pesquisas onde há instituições de poder, grandes somas de dinheiro envolvidas, cargos e posições sociais de destaque entre outras dessas coisas das quais a divulgação dos resultados dessas pesquisas tem um alcance regional, global, nacional, mundial como estatuto de verdade ou de conhecimento, um viés cognitivo pode levar ao estabelecimento de erros grosseiros que influenciam muita gente e ainda tem o poder de fazer uma reengenharia social a partir da divulgação destes resultados. E é aí que mora o perigo!

Então, como profilaxia para nossa própria capacidade cognitiva no dia a dia ou para podermos ter uma capacidade cognitiva mais crítica ante o que nos aparece por meio dessas instituições de poder, é importante termos em conta alguns dos vieses cognitivos mais comuns para podermos tanto refazermos nossos processos cognitivos quanto pressionar aqueles que ditam a verdade. Aqui tem alguns deles.

Viés da disponibilidade: é um atalho mental que se baseia em exemplos imediatos que vêm à mente de uma determinada pessoa ao avaliar um tópico, conceito, método ou decisão. As pessoas tendem a valorizar enormemente informações mais recentes em seus julgamentos, formando opiniões tendenciosas, tratando as notícias mais recentes como mais importantes.

Viés de confirmação (ou tendência de confirmação): é a tendência para procurar ou interpretar informações de uma maneira que confirme preconceitos próprios. Tendência cognitiva das pessoas de procurarem ou interpretarem informações de forma que estas confirmem suas crenças ou hipóteses.

Viés atencional: tendência de prestar atenção a estímulos emocionais dominantes em seu ambiente e negligenciar dados relevantes ao fazer julgamentos de correlação ou associação.

Cascata de disponibilidade: um processo de auto reforço no qual uma crença coletiva ganha mais e mais plausibilidade por meio da crescente repetição no discurso público (ou “repita algo mil vezes e ele torna-se verdadeiro”).

Viés do ponto cego: a tendência de ver-se menos enviesado que outras pessoas ou identificar mais vieses cognitivos nos outros que em si próprio.

Viés da expectativa: a tendência de experimentadores de acreditar, certificar e publicar dados que concordam suas expectativas para o resultado de uma experiência e desacreditar e descartar ponderações correspondentes que aparecem em conflito com essas expectativas.

Viés de proporcionalidade: é a tendência das pessoas em assumir que grandes eventos têm grandes causas. Pode explicar a tendência das pessoas de acreditarem em teorias da conspiração.

Raciocínio motivado: dirigir um argumento para uma conclusão preferida, em vez de segui-lo para onde ele conduz.

Correlação e causalidade: A correlação é um bom indício de que há uma possível relação de causa e efeito entre dois eventos, mas por si só não é suficiente. Portanto, para que a conclusão de que a liberação da posse de armas reduziu a violência não seja um post hoc [isto é, assume que um fato acontece depois de outro como consequência do primeiro], é necessário descartar outras possibilidades. 

A redução na violência poderia ter sido provocada por outros fatores, como redução do desemprego, outras políticas governamentais relacionadas à encarceramento, educação, distribuição de renda etc. Somente depois que essas possibilidades tenham sido examinadas é possível verificar qual é realmente a causa da redução da violência.

Estes são alguns de muitos outros vieses, além das falácias lógicas e dos vícios epistêmicos que, por serem vícios, ficam despercebidos por nós mesmos.

Por isso, qualquer tipo de interpretação que venha do campo das ciências “humanas” deve ser dada já por enviesada cognitivamente. Por quê? Porque esta pesquisa não tem como padrão último algo objetivo. Por exemplo, o comportamento humano. Ele existe, ele é manifesto, ele é visível, mas qualquer interpretação sobre suas causas é do âmbito da intepretação subjetiva baseada em dados não objetivos no sentido de ter apenas uma forma de ser ou de interpretar.

Por mais que os aspectos humanos sejam medidos estatisticamente, matematicamente, a interpretação desses números ou “fórmulas” é uma dentre várias outras formas de abordar a questão. Aquela frase que diz que “os números não mentem”, aqui pode ser adicionada “mas também não dizem a verdade”, ou seja, dizem o que quiser que as interpretações subjetivas digam.

Portanto, qualquer interpretação do comportamento humano, seja social ou individual, não passa de uma opinião dada por um processo que tem em algum nível um viés cognitivo. E como a revisão dos vieses depende de um dado objetivo e real como árbitro final, e como não há isso no comportamento humano, pois ele é alterável segundo vários padrões que concorrem com ele, seja histórico, cultural, subjetivo, não há como qualquer “pesquisa científica” estabelecer um padrão de verdade ou conhecimento sobre este assunto.

Nem psicanálise, nem psiquiatria, nem psicologia nem filosofia clínica podem se arrogar um conhecimento último sobre o ser humano e seu comportamento. A única diferença é que a filosofia clínica já sabe isso de antemão e não quer ser científica nem dona de uma “verdade” sobre o ser humano ou seu comportamento. Trabalhamos com aproximações e isso é o suficiente para uma terapia que chegue ao objetivo de cada um, seja o bem viver, a felicidade, a tranquilidade ou qualquer outro objetivo que aquele que faz a terapia estabeleça.

*Prof. Dr. Fernando Fontoura

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Filósofo Clínico. Em 2019, por determinação da Direção e Conselho da Casa da Filosofia Clínica, lhe foi outorgado o título de “Doutor Honoris Causa”.

Málaga/Espanha

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