Em sentido direto, o conceito de doença não pode ser usado na pedagogia. Um pedagogo ou pedagoga não pode considerar um aluno ou aluna “doente”. Um advogado não usa o conceito de doença em sua linguagem de trabalho para definir seus clientes. Um engenheiro não se dirige a uma estrutura material de uma construção como “doente”. Um economista não pode avaliar um sistema econômico de “doente”. Um filósofo não usa este termo como avaliação moral de um sistema político ou moral. A sociologia não pode usar como se fosse de seu vocabulário técnico a palavra “doente”. Um matemático não avalia uma equação através do conceito de “doença”. Enfim, o termo “doença” é estritamente médico e todos os seus usos fora deste âmbito são metafóricos.
Leonidas Hegenberg, em seu livro “Doença:
um estudo filosófico”, escreve que medicina designa a ciência e a arte de
diagnosticar, tratar, curar e prevenir a doença, aliviando
a dor e melhorando ou preservando
a saúde; e também, o ramo de tal ciência ou arte que se vale de drogas ou
dietas etc.
As atividades médicas estão
voltadas para o corpo humano (não somente humano, mas no caso aqui quero
ressaltar esta área da medicina) e têm como objetivo curar, restaurar o estado
sadio, remediar o mal ou aflição física ou corporal, devolver a condição saudável
do corpo.
E o que é doença? De muitas
formas críticas que Leonidas Hegenberg explica e nos mostra em seu livro,
podemos dizer que, de forma geral, um doente necessita de um médico. Portanto,
para o ato médico é fundamental que exista o conceito de doença. Um corpo
doente é um corpo que necessita de intervenção médica, seja um intervenção
clínica ou não-clínica e também necessita de investigações através de métodos
para “auscultar”, “sentir” e ver o corpo (ou “ver” no sentido de uma imagem por
computador como uma tomografia computadorizada) e, finalmente, a prescrição de
um medicamento. Os casos variam, as soluções variam, os procedimentos variam,
mas o que não varia é que doença é um conceito médico que tem relação direto
com o corpo, seu sistema, sua estrutura, sua funcionalidade “natural” ou
“normal” (com muitas aspas). Sócrates (ou a filosofia) como medicina da alma
era (e é!) uma metáfora.
Para que algo seja considerado
doença tem que haver um diagnóstico objetivo da doença em si quanto também do
órgão afetado por ela. Em uma infecção na garganta podemos tanto identificar
objetivamente o agente patógeno quanto o órgão afetado. Se não se puder
identificar diretamente pela visão ou tato do médico, se usa instrumentos
tecnológicos para isso, sejam microscópios, imagens etc. Se nenhuma destas
coisas alcançou qualquer objetividade na análise ou coleta direta de um
patógeno em si ou em qualquer órgão do corpo humano, não há doença.
Uma terapia que diz tratar de
doenças que não se manifestam objetivamente de nenhuma forma por instrumentos
ou tecnologias de análise, é médica? Se uma intervenção que se diz médica não
usa ou não faz uso de nenhum dado objetivo diretamente de afetação corporal ou
de algum órgão nem do agente patógeno, é um ato médico? Um comportamento humano
pode ser considerado como um dado objetivo de alguma afetação de algum órgão ou
parte do corpo?
Bem, o comportamento pode ser um
sintoma de algo. Uma pessoa se torna irritadiça e mal-humorada porque sofre de
dores abdominais por semanas. Vai ao médico e, depois de exames objetivos como
de sangue ou outros, verifica que tem uma infecção intestinal. O seu
comportamento anterior, que era um efeito de suas dores e espasmos intestinais,
poderia ser chamado de doente?
Se a pessoa tem um comportamento
irritadiço como do exemplo anterior, diz que tem dores de cabeça intensas por
semanas, é levada ao médico, faz exames objetivos e nada é encontrado em seu
cérebro ou em outra parte de seu corpo que se possa ser uma causa ou causas de
seu comportamento, esta pessoa pode ser considerada uma doente “médica” embora
tenha dores de cabeça?
Agora, para complicar ainda mais
(ou facilitar, pois a lógica pode nos salvar): se uma pessoa demonstra um
comportamento irritadiço por semanas ou uma ansiedade recorrente por meses,
anos mas não se queixa de nenhuma dor ou sintoma de dor ou mal estar físico
corporal ou em algum órgão e, mesmo assim vai a um médico para descartar
qualquer possibilidade de alguma doença objetiva e verifica que não tem nada de
errado com seu corpo físico no geral, e tudo o que sente são comportamentos
alterados que lhe afligem, esta pessoa pode ser considerada “doente” e ser alvo
de um “ato médico”?
Uma pessoa sensata, com um mínimo
uso de uma lógica básica, diria que não. Que o que essa pessoa tem, seus
sintomas, não são físicos e que sua “doença” é de outra categoria, de outro
âmbito. Sua procura não deveria ser um médico, até porque já foi e não encontrou
nada de errado em seu corpo, mas deveria ser de um terapeuta da mente, do
“mundo interno” de cada um, pois sabemos, intuitivamente, que muitos problemas
mentais acabam por afetar nosso corpo mesmo como uma gastrite por excesso de
tensão nervosa, por exemplo.
Este terapeuta do qual esta
pessoa deve procurar, já que não tem nada físico ou biológico encontrado em seu
corpo e órgãos, que tipo de conhecimentos deve ter? Médicos? Científicos? Da
estrutura do corpo e de seus órgãos? Do cérebro? Ou conhecimentos de outra
categoria? Como os pensamentos, suas dinâmicas, suas estruturas, suas relações
com nossos valores, juízos, pré-juízos, preconceitos, representações de mundo
das pessoas ou de si mesmo? Essas são as terapias, de modo geral, da “palavra”,
da escuta, do diálogo.
Por que raios então as pessoas
procuram psiquiatras biológicos para seus problemas de suas estruturas internas
– pensamentos, emoções, valores pessoais etc. – se eles com sua formação médica
não podem ajudar em nada nestas questões já que elas não têm nenhuma relação
com algum problema biológico, do corpo ou de qualquer órgão? Em seu livro
bíblico das “doenças” mentais, o DSM, não há uma doença médica propriamente
dita. As doenças médicas estão em outros manuais, cada um deles de acordo com a
área de estudo, pesquisa e tratamentos apropriados. Mas não estão nenhum deles
no livro da psiquiatria biológica. Porque o DSM não é um livro de doenças,
somente se o considerarmos de forma metafórica.
Um psiquiatra biológico honesto,
quando chega uma pessoa querendo tratamento com ele, deveria indicar antes de
tudo que essa pessoa fosse a um médico de verdade e fizesse exames para
certificar-se de que não há nada de errado em sua biologia. Por que um psiquiatra
faria isso? Porque ele não é médico o suficiente para fazer esses exames nem
praticar essa medicina. E como ele examina a pessoa que vai ao seu consultório?
A partir do que a própria pessoa diz sobre si e, o que é um ato de
desumanização, a partir do que os adultos e outras pessoas falam da criança,
mesmo que a criança não se queixe de nada.
Muito bem, e o que o psiquiatra
biológico faz com isso, com o que as pessoas narram de si mesmas e de suas
crianças? Pede alguns exames objetivos para verificar objetivamente alguma
doença em seu corpo que possa ser a causa desses comportamentos sintomáticos?
Não, pois como disse antes, ele não tem essa competência médica e nem
instrumentos tecnológicos ou mecânicos que possa usar para verificar alguma
causa biológica em seu paciente.
Ele diretamente, avaliando a
narrativa da pessoa a partir de uma lista ou tabelinha de perguntas subjetivas,
baseadas zero em qualquer exame objetivo do corpo, receita um medicamento. Mas
não é qualquer medicamento. É um de tarja preta, ou seja, que tem alto risco de
efeitos indesejáveis e pode causar riscos à saúde, causar tolerância,
dependência física e mental.
Esses são remédios que necessitam
de um controle rigoroso e que um médico sem capacidade médica geral, sem nenhum
exame objetivo ou conhecimento direto de um problema orgânico, supõe que tem
algo de errado em sua química cerebral que é a causa do comportamento da
pessoa. E por que ele supõe isso? Porque a indústria farmacêutica e seus
agentes que indicaram esses medicamentos a ele, disseram que assim era. Ou
porque ele recebeu alguns artigos “científicos” como justificativa da eficácia
desses psicotrópicos. Se uma criança estivesse brincando de médico, seria
bonitinho, mas se uma criança estivesse brincando de médico e receitando
remédios da prateleira da casa de seus pais aos seus amiguinhos e dando a eles
estes medicamentos, já não seria tão bonitinho. No mínimo receberia uma bronca
de seus pais.
E por que os psiquiatras
biológicos são levados a sério? Eles não são médicos, pois suas “doenças” não
são objetivas e não há nenhuma marcação biológica ou instrumento ou exame que
possa validar ou mostrar algo objetivo no corpo de seu paciente que seja uma
doença ou que seja a causa de um comportamento. O que eles fazem é considerar o
próprio comportamento “doente”, o que é uma barbaridade, pois espirrar é
sintoma e não a gripe em si. Não há nenhuma cientificidade médica que apoie
seus “diagnósticos”, em nenhuma área ou transtorno descrito no DSM. O que eles
consideram doença é uma suposição que há 50 anos não é comprovada, ao
contrário, ano após ano mais e mais artigos científicos provam que o
desequilíbrio químico no cérebro como causa dos transtornos ou “doenças”
mentais é uma farsa. E ainda provam que é exatamente o uso dos psicotrópicos
que altera a química e estrutura cerebral.
Se não há doença nem prova
alguma, do que os medicamentos psiquiátricos tratam? E para que servem os
psicotrópicos que receitam, medicamentos de tarja preta? Não são médicos, não
tratam de nada, pois não existe objetivamente “doença” psiquiátrica alguma,
então não são terapeutas. Nem terapeutas médicos nem terapeutas da “fala” das
coisas da “mente” ou da estrutura interna do paciente, já que agora só o que
fazem é indicar a venda de medicamentos tarja preta que não atingem nenhum mal
objetivo no corpo para doenças que não existem.
Alguns psiquiatras questionam as
doenças mentais e dizem que elas não existem, mas acatam o uso “moderado” de
drogas psiquiátricas. Outros, são contra a medicalização da normalidade e das
agruras da vida, mas acreditam que há algumas doenças mentais. Tanto uns como
outros denunciam os “abusos” da psiquiatria biológica de um lado ou de outro.
Thomas Szasz diz que não denuncia os abusos da psiquiatria biológica e
institucional, mas que a própria instituição psiquiátrica é um abuso em si.
Estou com ele.
Mas enquanto a sociedade achar
que as drogas psiquiátricas são um bem, porque alteram o estado de consciência
e o comportamento a curto prazo enquanto a droga está fazendo efeito no corpo,
como qualquer psicoativo faz, a própria sociedade dá o aval para a psiquiatra
biológica manter a farsa como se fosse uma verdade.
A sociedade compreende os efeitos
perversos do abuso do fumo, das bebidas alcoólicas e de outras substâncias
socialmente aceitas. Mas não tem a mínima ideia dos males das drogas
psiquiátricas. Pensa que elas fazem bem, e que os psiquiatras biológicos são
médicos. O dia que a sociedade começar a pesquisar um pouco mais sobre os
efeitos das drogas psiquiátricas e compará-las, não à aspirina ou ao
antibiótico, mas com as anfetaminas, cocaína, heroína e similares, verá o quão
venenosas e destrutivas da química do corpo são.
Um véu de ignorância ainda paira
sobre a consciência social a respeito das drogas psiquiátricas e do papel da
psiquiatria biológica. Este véu já foi dissipado acerca das bebidas alcoólicas
e do fumo e de algumas outras práticas sociais que eram absurdas, como os
preconceitos de raça, da mulher e dos homoafetivos. Que comecemos agora a dissipar
este véu da psiquiatria biológica e suas drogas psiquiátricas.
*Prof. Dr. Fernando Fontoura
Filósofo. Graduado, Mestre e
Doutor em Filosofia. Escritor. Filósofo Clínico. Em 2019, por indicação do
conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de “Doutor
Honoris Causa”. Autor da obra: “Ser Terapeuta em Filosofia Clínica”. Dentre
outras.
Málaga – Espanha.
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