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Hermenêutica Compreensiva*

Quando se pensa ou busca trabalhar com hermenêutica podem surgir várias dúvidas sobre o tema. Talvez a distinção mais significativa para a Filosofia Clínica esteja entre uma hermenêutica interpretativa e uma hermenêutica compreensiva.

De forma introdutória, a hermenêutica interpretativa (também usada nas abordagens tradicionais da terapia) foca na busca por entender a mensagem com base no que já se sabe sobre o tema. Tem como ponto de partida um saber-poder estabelecido por definições bem construídas, ajustadas e fundamentadas, com base na tradição. Trata-se de um saber cristalizado, que confere ao texto existencial diante de si uma classificação previamente analisada, definida. Características reconhecidas mesmo antes de um encontro se realizar, demonstrando que a expressão do sujeito, de antemão, já está determinada.

Em outras palavras, um fundamento estabelecido para reconhecer no paciente alguma patologia, tendo como referência uma lógica de manual, destituindo a pessoa de seu devir inédito, impregnado de possibilidades, e que poderia transgredir os limites de sua condição em desenvolvimento, não fossem as interpretações do profissional (via agendamentos, distorções).

Talvez, se fosse permitido ao paciente exercitar suas lógicas desconsideradas, cogitar suas hipóteses absurdas, numa interseção libertária, não permitindo ao profissional Psi convencê-lo de que suas verdades e representações constituem alguma forma de loucura, fosse possível uma aproximação com a Filosofia Clínica.

Nesse sentido esclarece Gadamer: “A compreensão jamais é um comportamento subjetivo frente a um objeto dado, mas frente à história efeitual, e isto significa, pertence ao ser daquilo que é compreendido” (Verdade e método, 1997).  

A hermenêutica filosófica, ao contrário, possui como característica uma atitude compreensiva em vias de construção compartilhada. Seu ponto de partida é uma dialética do encontro, uma relação aprendiz. Um saber que tem um não saber como ponto de partida. Aqui precisamos de uma adequação metodológica para fundamentar essa nova abordagem: a Filosofia Clínica. Interseção em que se reivindica, pelo filósofo, um constructo de eterno recomeço, para acolher as narrativas da raridade.

Ainda Gadamer: “Somente através do esquecimento é que o espírito recebe a possibilidade de uma total renovação, a capacidade de ver tudo com os olhos recém-abertos, de maneira que o que é velho e familiar se funde com as novidades que se veem em uma unidade de várias estratificações.” (Verdade e método, 1997).

Com esse novo paradigma, especialmente em alguns trabalhos posteriores aos escritos de Lúcio Packter, é possível encontrar subsídios teóricos e práticos a sua fundamentação e desenvolvimento, como uma terapia da liberdade. Como se sabe, essa nova abordagem, como obra aberta, permanece viva e sujeita a contribuições de quem faz dessa atividade uma prioridade de vida.

É o caso, por exemplo, da importância da hermenêutica compreensiva, como fundamento teórico e prático, especificamente a partir de Hans-George Gadamer em Verdade e método. Essa diferenciação ajuda a compreender a abertura para um acolhimento do fenômeno existencial diante do clínico.

Se um profissional (psiquiatra, psicólogo) aprendeu que a pessoa diante de si é um objeto de estudo sujeito a intervenções, um ser passível de avaliação diagnóstica, prognóstica, de medicalização, então será isso que sua percepção, previamente condicionada, vai enxergar. As pessoas não vão se mostrar, a esse olhar, como algo único, uma singularidade, mas como uma tipologia ou doença, algo a ser medicado, contido pela lógica do hospício e dos psicofármacos. Questão de método em Ciências Humanas!

Gadamer ensina: cautela, respeito, proximidade para com a condição existencial alheia ao mundo como vontade e representação do filósofo. Apresenta a hermenêutica filosófica como possibilidade de se conhecer determinada pessoa em seus dias de ressignificação. Uma atitude compreensiva é qualitativamente diferente do enquadramento tipológico, sendo este a instituição de uma clausura, de uma camisa de força metodológica, que transforma uma pessoa livre e em processo de mudança num objeto, em uma peça decorativa no canto da sala.

Compreender significa estar junto, ao lado, encolher distâncias, aproximar. Entender (epistemologicamente) inclui um distanciamento, uma trama conceitual que se afasta da originalidade do partilhante, como se ele fosse o portador de uma doença contagiosa, e isso deforma sua expressividade, cria obstáculos para acessar sua originalidade. Trata-se de uma relação fria e asséptica.

Anteriormente, em Filosofia Clínica, tínhamos o texto ‘Verdade e método’, de Gadamer, para fundamentar as verdades subjetivas (pré-juízos), como se estruturam, se desenvolvem, se sustentam, delimitando o lugar subjetivo.

No entanto, aqui estamos avançando em direção a outro aspecto desta obra, ou seja, a uma hermenêutica filosófica capaz de efetivar atitudes compreensivas, de estar com o outro em seus desdobramentos existenciais, qualificando as convivências clínicas como instantes de desconstrução, reconstrução, a partir das conjugações e demais possibilidades da terapia.  

Não tomar o seu lugar, mas estar junto, na desmedida em que o partilhante permita visitas ao seu jardim existencial. Aprender a linguagem por onde se diz, seus limites e deslimites, o alcance de sua régua existencial, e tudo que for aparecendo (fenomenologicamente) na dialética dos encontros.

*Hélio Strassburger in “Filosofia Clínica – Anotações e reflexões de um consultório”. Ed. Sulina/Porto Alegre/RS. 2021.

**Instagram: @helio_strassburger 

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