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Apontamentos sobre incompletude existencial*

Eu entendo bem a dificuldade de percebermos os nossos próprios pontos cegos. A ignorância, essa nossa companheira inseparável, é difícil, porque esconde-se em nossa sombra: como dizia Descartes, todo mundo (inclusive este que vos escreve) sempre se considera perfeitamente dotado de bom-senso e da capacidade de perceber os próprios enganos. Mas a confiança na clareza da nossa razão não é particularmente racional.

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Amigos, eu vivo da palavra falada e escrita. É curioso: no momento em que estou trabalhando, as frases e os parágrafos me parecem muito bem construídos. Reviso uma, duas, três vezes o conjunto. E fico satisfeito.

Dez minutos depois leio novamente o texto. Um pouco constrangido, começo a notar as repetições, as cacofonias, as falhas de pontuação, as proposições ambíguas. Corrijo. E novamente fico satisfeito.

Uma ou duas horas mais tarde, retorno a ele - e embaraço-me ao descobrir novos erros e omissões. Reescrevo algumas passagens, elimino outras. Satisfeito mais uma vez.

Até rever o trabalho no dia seguinte, quando inevitavelmente ali encontro vários outros problemas...

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A ignorância é difícil porque não percebemos quando somos ignorantes. Ora, todos temos dificuldades com a nossa própria linguagem. Quando, porém, lidamos com a linguagem de outro alguém, as dificuldades são ainda maiores: somos radicalmente ignorantes a respeito do contexto, da experiência, das leituras que ali se manifestam. Infelizmente, em vez de recebermos a narrativa diferente da nossa com atenção amorosa, reconhecendo os vazios da nossa referência interpretativa e deixando o espaço para que o outro os preencha - ou não -, costumamos fazer justamente o contrário: preenchemos os espaços com a nossa própria estrutura de pensamento, e culpamos o outro alguém quando assim o quadro do seu discurso nos parece desarmônico, equivocado ou detestável. Contudo, os responsáveis por essa interpretação na qual o outro aparece de modo monstruoso somos nós mesmos - nós e a nossa inevitável cegueira em relação àquilo que ignoramos.

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Não existe antídoto para a nossa ignorância. Ela é parte da condição humana. Jamais conheceremos tudo o que queremos conhecer - e nunca teremos acesso ao pensamento, à história, ao sentimento do outro senão por intermédio da linguagem, essa fonte de confusão infinita.

Não existe antídoto para a nossa ignorância, mas existe antídoto para o ódio em relação ao outro alguém que diz aquilo que nos parece inaceitável. O antídoto é a aceitação da inevitabilidade dos aparentes vazios e da aparente incompletude do discurso alheio. É o abandono da soberba intelectual - da crença de que somos capazes de capturar por completo o sentido dos outros dizeres, da ilusão de que as asas da nossa coruja podem cobrir as asas da coruja do outro alguém. O antídoto para o ódio à diferença é a compreensão de que simplesmente nós não passamos pelos mesmos caminhos por onde o outro alguém passou. E que a caminhada por caminhos diferentes é a própria condição da nossa existência no mundo.

*Prof Dr. Gustavo Bertoche

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Professor. Escritor. Musicista. Filósofo Clínico. Autor de: Realidade e realização - a dialética do real na epistemologia de Bachelard, dentre outros. Em 2019, por indicação do Conselho e Direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de Doutor Honoris Causa

Curitiba/PR

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