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O que a Filosofia Clínica, não é?***

 

Não tendo pretensão de definir um conceito sobre o que é a Filosofia Clínica (F.C.), mas antes convidá-lo a refletirmos sobre alguns aspectos daquilo que ela não é, me apresento: Sou Ancile, habilitada à pesquisa em F.C. e Graduada em Psicologia. Atuo com psicoterapia de inspiração existencialista há 12 anos. Se no Novo Paradigma ainda me sinto como uma criança sendo alfabetizada, na área psi posso dizer que já concluí as “séries iniciais” e me sinto segura para propor a tentativa de traçarmos um paralelo no sentido de ressaltar as diferenças essenciais de cada área.

Trago algumas características metodológicas das 3 grandes áreas psis, Psicologia, Psicanálise e Psiquiatria, suas diferenças entre si e em relação à Filosofia Clínica. Começando pela Psicologia, fundada em 1879 por Wilhelm Wundt (1832-1920), a partir da criação do Laboratório de Psicologia Experimental na Universidade de Leipzig, Alemanha. São muitas escolas de pensamento desde então, com variadas teorias que buscam, mais do que descrever e compreender, catalogar comportamentos e tipologizá-los, a partir das evidências de estudos científicos, em normal/anormal, saudável/adoecido, funcional/disfuncional, etc. A partir disto são desenvolvidas técnicas diagnósticas e de tratamento das disfunções e/ou transtornos descritos no DSM - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.

O título de Psicólogo é obtido a partir de curso de Graduação, com duração de 5 anos, onde temos disciplinas sobre ética profissional, teorias da personalidade, fisiologia, psicopatologia, psicofarmacologia e afins. O profissional sai habilitado para atuar em diversas áreas que não somente a clínica. Aos que pretendem clinicar é orientado cursar formação lato sensu na abordagem teórica desejada.

No Brasil, a profissão é regulamentada desde 1962 por um sistema de Conselhos que legisla, fiscaliza e pune sobre a atuação profissional. A quem atua na área clínica e é registrado no Conselho Federal de Psicologia é vedada a utilização de teorias/técnicas que não validadas pelas evidências científicas e, portanto, não autorizadas pelo respectivo órgão de classe.

A seguir temos a Psicanálise, cujo fundador foi Sigmund Freud (1856-1939) com a publicação de seu primeiro livro “A interpretação dos sonhos” em 1900. Também vem sendo revista por discípulos e dissidentes. Grosso modo, o psicanalista se pauta em teorias a partir de estudos de casos para fazer um psicodiagnóstico do sujeito e aplicar técnicas com objetivo de curá-lo, tendo por base manifestações inconscientes por ele interpretadas. Qualquer pessoa com curso de nível superior, pode fazer a formação em Psicanálise no Brasil. Para atuar como Psicanalista é indicada a formação teórica, o estágio prático e a análise pessoal, cuja duração varia de 2 a 4 anos, em escolas livres ou cursos de especialização lato sensu.

Por fim chegamos à Psiquiatria, que tem como referência de fundação Philippe Pinel (1745-1826) com a instauração dos manicômios e catalogação dos Transtornos Mentais, no final do século XVIII. A Psiquiatria é uma especialidade médica e atua, em geral, com a prescrição de medicamentos e outras técnicas mais ou menos invasivas para o tratamento das psicopatologias.

O Médico Psiquiatra é a autoridade referenciada para indicar a baixa e dar alta em internações em instituições ou alas psiquiátricas em hospitais gerais, e na elaboração/emissão de laudos para diversos fins legais. Para estes fins utiliza como referência a CID-10, que é a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. A Residência em Psiquiatria tem duração de 3 anos, onde o profissional estudará sobre Psicopatologia e Psicofarmacologia. Caso deseje ser terapeuta, poderá realizar curso livre em Psicanálise ou formação lato sensu em qualquer abordagem teórica da Psicologia.

De forma sintética procurei descrever sobre cada uma das psis e ressaltar nestes poucos parágrafos alguns dos pontos que as diferenciam da F.C. Como podemos perceber são muitos contrastes metodológicos e de formação. Grande assimetria está no fato de que na F.C. não há teoria à priori.

O Filósofo Clínico não parte de um conceito preestabelecido. Como retrata Fernando Fontoura “dentro da formação em filosofia clínica a questão sobre conhecimento teórico é de pouca monta, pois não há teorias sobre o ser humano, sua natureza, o bem ou mal viver, a ‘normalidade’ ou doenças mentais ou o que quer que seja” (Fontoura, 2022, p.7).  O objetivo do terapeuta aqui não está em buscar no discurso do partilhante dados para encaixar em critérios descritos em manuais. Segundo Caruzo, “Sua fonte de inspiração é a narrativa da historicidade do partilhante, sem catalogá-lo numa camisa de força interpretativa preestabelecida” (Caruzo, 2021, p. 12). É no próprio partilhante, em sua singularidade, que iremos encontrar os conceitos sobre ele mesmo e seus remédios existenciais.  Ou seja, ainda que F.C. e as psis pareçam ter um objetivo em comum, o abismo das tipologizações as separa.

*Ancile Leal

Psicóloga. Psicoterapeuta Existencialista. Especialista em Filosofia Clínica pela Casa da Filosofia Clínica. Escritora.

**Texto originalmente publicado na edição verão/2024 da revista da Casa da Filosofia Clínica.

Referências:

CARUZO, Miguel Ângelo. Introdução à Filosofia Clínica. Petrópolis, RJ. Vozes. P.12. 2021.

FONTOURA, Fernando. O ser terapeuta. In: Revista da Casa da Filosofia Clínica. Edição 02 - Primavera/2022, p.7

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