Talvez seja importante dizer que
em Filosofia Clínica partimos de um não saber, causa de incômodo porque os
princípios de verdade que regem as epistemologias vigentes e aceitas em nossa
sociedade estão relacionados ao saber-poder, mas isso fica como provocação e
assunto para um próximo texto.
Agora, partindo de um não saber, recebemos a pessoa em clínica e com isso passamos a construir juntas os conhecimentos singulares àquela existência, a aprender, ela e eu, sobre ela. Antropologia e alquimia acontecem no decorrer dos encontros.
Uma das primeiras coisas que Lúcio Packter relata em seus estudos no “Caderno A” é que, a partir dos exames categoriais, o filósofo clínico vislumbra “uma representação para si mesmo da representação do outro”. Motivo pelo qual em Filosofia Clínica trabalhamos com aproximações, ou seja, podemos conhecer a pessoa de modo aproximado. Também é fundamental o acolhimento de quem nos procura e um zelo pela interseção entre filósofo clínico e partilhante.
Os exames categoriais compõem a primeira etapa do método e têm o objetivo de localizar existencialmente a pessoa, quem ela é, onde habita, o que faz, quais suas relações. Ocorrem a partir da escuta atenta e observação de cinco categorias, são elas: assunto imediato e assunto último; circunstância; lugar; tempo e relação. As categorias foram inspiradas em Aristóteles e Kant e englobam questões objetivas e subjetivas, como nos ensina Miguel Angelo Caruzo no livro “Introdução à Filosofia Clínica”. Então, “a terapia começa com aquele que parece o motivo pelo qual a pessoa procurou o filósofo clínico”, trata-se da queixa inicial ou assunto imediato.
O assunto imediato pode durar algumas sessões até que este se esgote e o clínico consiga solicitar ao partilhante o relato de sua historicidade, entrando na categoria circunstância, onde a pessoa vai contar a história de vida na perspectiva dela. Em sua movimentação epistemológica, o filósofo clínico estará cuidando para trabalhar com agendamento mínimo e dado literal, o que exige uma postura fenomenológica descritiva com suspensão dos pré-juízos para que o discurso partilhante flua. O assunto último vai aparecendo no decorrer das sessões, com ajuda da coleta da historicidade, montagem da estrutura de pensamento e identificação dos submodos informais e demarca a autogenia da pessoa, suas questões em conflito, possíveis causas do sofrimento.
Já trabalhei com um caso onde a pessoa não abriu nossos encontros com um dos conteúdos que lhe causou sofrimentos e conflitos. Meses depois, solicitou uma sessão para contar algo que eu suspeitava e sabia que, pela montagem de sua estrutura de pensamento, se viesse a relatar seria delicado. Além do mais, notei que isso não nos impedia de trabalhar em prol de sua autogenia e bem-estar subjetivo. O importante nesses casos é perceber que, mesmo o fato estando à margem, aparecem os tópicos determinantes, a somaticidade e a esteticidade vivenciadas pela pessoa. Agindo assim, respeitamos a categoria tempo da partilhante que abriu informações quando sentiu-se preparada.
Bem, então sabemos que na prática as informações se entrelaçam, formando um conjunto, ou seja, as três etapas do método: exames categoriais, estrutura de pensamento e submodos aparecem entrelaçados, no decorrer do discurso da pessoa que se revela. É esse conjunto, com suas conexões entre categorias, tópicos e submodos, que descortina a singularidade do sujeito em sua autogenia. A observação das categorias acontece com ênfase no início dos trabalhos e também ao longo do processo clínico.
Seguindo, tanto no momento em que a pessoa chega à clínica com seu assunto imediato quanto na fase em que passamos a trabalhar a circunstância ou historicidade do ponto de vista dela, o funcionamento e importância das categorias lugar, tempo e relação vão aparecendo. A partilhante pode chegar ao consultório relatando que: “desde os 15 anos penso em fazer terapia, mas antes eu precisava me formar e agora com 23 e empregada, posso me dedicar e pagar para fazer”. Temos aí uma busca envolta na categoria tempo e circunstâncias que a levam ao desfecho de nos procurar.
Especialmente nesta fase inicial, é natural alguma pessoa solicitar respostas prontas sobre quem ela é, o que deve fazer, etc. Ao filósofo clínico cabe expressões como “vamos trabalhar para entender” ou “precisamos de mais dados para saber”... e seguir trabalhando com o máximo de respeito pela existência que se apresenta, sem interpretações.
O foco nos exames categoriais nesses primeiros contatos com a pessoa é essencial para ir percebendo seus assuntos imediatos até que o assunto último apareça, para entender a circunstância vivenciada pela pessoa, para aprender sobre suas relações com o tempo objetivo, cronológico e seu tempo subjetivo, sobre o lugar onde habita desde sua cidade, seu trabalho até o lugar interno, seus sentimentos, suas ideias, buscas e também para aprender com quem se relaciona e qual a qualidade dessas interseções, consigo mesma, com o mundo, bichos, plantas, livros, vida...
* Dionéia Gaiardo
Filósofa Clínica. Escritora.
Tapejara/RS
**Texto publicado na edição especial de outono/2024 na revista da Casa da Filosofia Clínica. Disponível em: www.casadafilosofiaclinica.blogspot.com
Referências:
CARUZO, Miguel Ângelo. Introdução à Filosofia Clínica. Petrópolis. Editora Vozes, 2021.
PACKTER, Lúcio. Caderno A.
STRASSBURGER, Hélio. Filosofia Clínica: anotações e reflexões de um consultório. Porto Alegre: Sulina, 2021.
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