Pular para o conteúdo principal

Aberturas existenciais***

Os processos de autogenia costumam revelar reorientação de rotas, reinvenção de rumos, abertura de caminhos. Em clínica, algumas vezes a pessoa inicia a terapia já nesse estágio de transformação pessoal. São tempos de travessia, onde pode ocorrer de a partilhante vivenciar suas experiências novas, pelo viés discursivo antigo e pelos princípios de verdade vigentes em seu grupo de convivência.

Instantes que podem levar a pessoa a classificar suas novidades em discursos que apontam estranhamentos para si ou para os outros, tais como: "eu pareço uma adolescente"; "já me disseram que eu pareço uma personagem, que não vou sustentar isso por muito tempo", e, talvez a partilhante esteja apenas passando por um momento de abertura existencial a ressoar em ressignificação pessoal, familiar, de trabalho, novas buscas, experimentando desejos sexuais, atitudes de empoderamento frente aos que lhe exerceram poder ao longo da vida...

Então, ainda que ela esteja saboreando e recolorindo seu universo, pode apresentar algum conflito, sentindo-se estranha e tateando novas linguagens para se dizer, novos vocabulários para se traduzir, se entender, se expressar.

Nesse sentido, a Filosofia Clínica, com sua língua de novo paradigma, contribui oferecendo para a pessoa novas formas de ver seus fenômenos e de falar suas experiências. Algo significado como "adolescente" pode tranquilizar quando o terapeuta ajuda com a tradução: "eu entendo o que você diz sobre parecer uma adolescente, mas, eu diria que estás em pleno processo de abertura existencial". Nesse instante a pessoa sorri e diz: “ai que lindo isso!” (abrindo os braços).

Assim, a partilhante sai de um estado de engessamento promovido pelo rótulo “adolescente” e entra em um fluxo mais livre, com abertura para se reconhecer, com novas lentes para descobrir e escolher sua melhor versão em uma circunstância singular. Movimento clínico que demonstra como a forma de trabalhar dentro deste novo paradigma e suas possibilidades de tradução podem ter a eficácia de um calmante.

A palavra que acalma, tranquiliza, renova. Sem o peso e as consequências de estar mexendo demasiado no passado como fazem algumas linhas das psis ou com medicação que interfere na química cerebral, travando esses momentos de reconstrução de vida, colocando a pessoa em um lugar de apatia, sonolência, taquicardia e tantos outros sintomas apresentados quando fazem uso de remédios psiquiátricos.

O recurso da palavra pode ser remédio, provado através da sintonia na interseção entre o clínico e seu partilhante. Recurso vasto, talvez infinito, estudado por Freud e os seus, por algumas linhas de terapia como psicologia e psicanálise, que segue avançando. A meu ver, renovado com a Filosofia Clínica em uma linguagem que parte da singularidade, circunstância única de cada um, conjecturando através desse mundo das palavras, desde a linguagem do partilhante, outros mundos possíveis e inexplorados até então.

Considero este um caminho bastante honesto e precursor a desenvolver habilidades cada vez mais humanas, em direção ao que importa, ao que pode, ao que quer e onde mora a singularidade daquele que nos procura em busca de cuidado, atenção à vida em vias de ser, não ser, parecer - no sentido de ser parecido, aproximando-se do que deseja - para não perecer. Pertencendo a fatia de paraíso que merece, como diz o professor Hélio Strassburger.

Em uma história humana marcada pela influência das filosofias religiosas e suas ideias de paraíso no céu, após a morte, pode ser reconfortante pensar que uma fatia desse paraíso acontece aqui, na terra, em vida. Ao aproximar-se de sua singularidade, em intimidade e integridade consigo, a pessoa acessa aquilo que a faz vibrar nas melhores notas, em significados e sentidos próprios, alcançando níveis mais altos de satisfação pessoal.

Em meio a um redemoinho promovido por mudanças, um partilhante narrou: "eu  tô experimentando uma sensação de otimismo pela primeira vez na minha vida, aos sessenta anos". E não que sua vida estivesse perfeita – a perfeição é um termo equívoco – ele é que sentia-se mais íntimo e amigo de si, por isso, mais forte, com bases mais sólidas, com alicerces para lidar com as agruras do mundo.

Nesse caso, o partilhante escolheu diminuir a importância das questões externas em como o mundo parece e aparece afetando suas emoções, para direcionarmos atenção e cuidados ao seu interior, fortalecendo o que acha de si mesmo e legitimando sua busca por aperfeiçoamento moral que é para onde ele tem se direcionado existencialmente, especialmente com o suporte dos submodos de esteticidade seletiva, expressividade e na leitura dos estoicos, informação dirigida que faz sentido para ele e casa com sua historicidade.

Novas cores nas paredes, novos livros na estante, macieiras crescendo, representam e materializam os rituais de sua reinvenção. É interessante pensar que as aberturas existenciais implicam em fechamentos, isto é: para ser alguém novo, me despeço, inteiro ou em partes, daquilo que já fui...

*Dionéia Gaiardo

Filósofa Clínica. Escritora. Mãe do Gael.

Tapejara/RS

**Texto originalmente publicado na edição verão/2024 da revista da Casa da Filosofia Clínica.  

Comentários