Os processos de autogenia costumam revelar reorientação de rotas, reinvenção de rumos, abertura de caminhos. Em clínica, algumas vezes a pessoa inicia a terapia já nesse estágio de transformação pessoal. São tempos de travessia, onde pode ocorrer de a partilhante vivenciar suas experiências novas, pelo viés discursivo antigo e pelos princípios de verdade vigentes em seu grupo de convivência.
Instantes que podem levar a
pessoa a classificar suas novidades em discursos que apontam estranhamentos
para si ou para os outros, tais como: "eu pareço uma adolescente";
"já me disseram que eu pareço uma personagem, que não vou sustentar isso
por muito tempo", e, talvez a partilhante esteja apenas passando por um
momento de abertura existencial a ressoar em ressignificação pessoal, familiar,
de trabalho, novas buscas, experimentando desejos sexuais, atitudes de
empoderamento frente aos que lhe exerceram poder ao longo da vida...
Então, ainda que ela esteja
saboreando e recolorindo seu universo, pode apresentar algum conflito,
sentindo-se estranha e tateando novas linguagens para se dizer, novos
vocabulários para se traduzir, se entender, se expressar.
Nesse sentido, a Filosofia
Clínica, com sua língua de novo paradigma, contribui oferecendo para a pessoa
novas formas de ver seus fenômenos e de falar suas experiências. Algo
significado como "adolescente" pode tranquilizar quando o terapeuta ajuda
com a tradução: "eu entendo o que você diz sobre parecer uma adolescente,
mas, eu diria que estás em pleno processo de abertura existencial". Nesse
instante a pessoa sorri e diz: “ai que lindo isso!” (abrindo os braços).
Assim, a partilhante sai de um
estado de engessamento promovido pelo rótulo “adolescente” e entra em um fluxo
mais livre, com abertura para se reconhecer, com novas lentes para descobrir e
escolher sua melhor versão em uma circunstância singular. Movimento clínico que
demonstra como a forma de trabalhar dentro deste novo paradigma e suas
possibilidades de tradução podem ter a eficácia de um calmante.
A palavra que acalma,
tranquiliza, renova. Sem o peso e as consequências de estar mexendo demasiado
no passado como fazem algumas linhas das psis ou com medicação que interfere na
química cerebral, travando esses momentos de reconstrução de vida, colocando a
pessoa em um lugar de apatia, sonolência, taquicardia e tantos outros sintomas
apresentados quando fazem uso de remédios psiquiátricos.
O recurso da palavra pode ser
remédio, provado através da sintonia na interseção entre o clínico e seu
partilhante. Recurso vasto, talvez infinito, estudado por Freud e os seus, por
algumas linhas de terapia como psicologia e psicanálise, que segue avançando. A
meu ver, renovado com a Filosofia Clínica em uma linguagem que parte da
singularidade, circunstância única de cada um, conjecturando através desse
mundo das palavras, desde a linguagem do partilhante, outros mundos possíveis e
inexplorados até então.
Considero este um caminho
bastante honesto e precursor a desenvolver habilidades cada vez mais humanas,
em direção ao que importa, ao que pode, ao que quer e onde mora a singularidade
daquele que nos procura em busca de cuidado, atenção à vida em vias de ser, não
ser, parecer - no sentido de ser parecido, aproximando-se do que deseja - para
não perecer. Pertencendo a fatia de paraíso que merece, como diz o professor
Hélio Strassburger.
Em uma história humana marcada
pela influência das filosofias religiosas e suas ideias de paraíso no céu, após
a morte, pode ser reconfortante pensar que uma fatia desse paraíso acontece
aqui, na terra, em vida. Ao aproximar-se de sua singularidade, em intimidade e
integridade consigo, a pessoa acessa aquilo que a faz vibrar nas melhores
notas, em significados e sentidos próprios, alcançando níveis mais altos de
satisfação pessoal.
Em meio a um redemoinho promovido
por mudanças, um partilhante narrou: "eu
tô experimentando uma sensação de otimismo pela primeira vez na minha
vida, aos sessenta anos". E não que sua vida estivesse perfeita – a
perfeição é um termo equívoco – ele é que sentia-se mais íntimo e amigo de si,
por isso, mais forte, com bases mais sólidas, com alicerces para lidar com as
agruras do mundo.
Nesse caso, o partilhante
escolheu diminuir a importância das questões externas em como o mundo parece e
aparece afetando suas emoções, para direcionarmos atenção e cuidados ao seu
interior, fortalecendo o que acha de si mesmo e legitimando sua busca por
aperfeiçoamento moral que é para onde ele tem se direcionado existencialmente,
especialmente com o suporte dos submodos de esteticidade seletiva,
expressividade e na leitura dos estoicos, informação dirigida que faz sentido
para ele e casa com sua historicidade.
Novas cores nas paredes, novos
livros na estante, macieiras crescendo, representam e materializam os rituais
de sua reinvenção. É interessante pensar que as aberturas existenciais implicam
em fechamentos, isto é: para ser alguém novo, me despeço, inteiro ou em partes,
daquilo que já fui...
*Dionéia Gaiardo
Filósofa Clínica. Escritora. Mãe
do Gael.
Tapejara/RS
**Texto originalmente publicado na edição verão/2024 da revista da Casa da Filosofia Clínica.
Comentários
Postar um comentário