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A metafísica de Alberto Caeiro*

 

De todos os heterônimos de Fernando Pessoa talvez seja Alberto Caeiro, um dos meus neopagãos prediletos, ao acionar em nós o submodo em direção às sensações (da abstração intelectiva para sensação corpórea), que mais dialogue com sensorial & abstrato, o tópico 3 da estrutura de pensamento.

Entendendo por sensorial o que deriva diretamente dos sentidos (dimensão do mundo sensível, concreto, plano dos fatos) e por abstrato o que se liga aos conceitos (dimensão do mundo inteligível ou arquetípico, plano das ideias). estrutura de pensamento, por sua vez, definida como um conjunto plástico e dinâmico de 30 tópicos que, em combinações várias, servem de constructos a serem preenchidos pela diversidade que em cada um de nós habita de modo peculiar.

Em clínica observamos que nem sempre o reiteradamente analisado é real e propício à sua integralidade. Em algumas singularidades a ponderação excessiva pode fragmentar o olhar, impedir conexões necessárias, gerar pontos cegos, romper com o fluxo, boicotar vivências e obstaculizar desfechos. Como um mascaramento, mesmo protetivo, tende a bloquear o espontâneo e ocultar ajustes necessários. Momento em que o desenho da malha intelectiva, proveniente das ligações tópicas e submodais que embasam modos de ser e agir do partilhante, pautadas na sua historicidade, vem em auxílio do filósofo clínico, sugerindo movimentações possíveis para cada caso.

Em “O Guardador de Rebanhos”, a proposta de Caeiro é de um desmascaramento que reposiciona a racionalidade, dando passagem para a ampliação da experiência. Ele nos convida a sentir profundamente a vida, a vivê-la ao invés de teorizá-la, desarmando as armadilhas que a reduzem e condicionam exclusivamente ao pensar.

O primeiro verso do Poema V introduz o imperativo convite de maneira veemente e provocativa: “Há metafísica bastante em não pensar em nada” ... As estrofes seguintes nos conduzem a mergulhar na natureza, despidos das verdades prontas. Sem o peso dos conceitos preestabelecidos o espaço para experiência da vida se descortina na presença potente do aqui e agora; onde a multiplicidade de sons, gostos, cheiros, texturas e tons dão fé do aprendizado, conferindo sentido e significado aos dias.

“Isto é talvez ridículo aos ouvidos

De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,

Não compreende quem fala delas

Com o modo de falar que reparar nelas ensina.”

(Estrofe 10, Poema V)

Nessa mescla contínua e cambiante com as coisas do mundo, o horizonte se expande e possibilita o avanço do caminhante, sagrado e profano se enlaçam em humano abraço. Eu sinto, sei e sou o caminho que faço e trilho.

“Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e o sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda hora,

E minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão pelos olhos e pelos ouvidos.”

(Estrofe 11, Poema V)

Parece não haver pensamento ampliado (abstrações) que se sustente sem base humana, que necessita categoricamente de refino sensorial (sensações, toques, trocas, atravessamentos, conexões), alicerce da empatia e alteridade. Ocasião em que sentir, pensar e fazer se entrelaçam. De onde brotam sentimentos de ordem estética (beleza nas formas), ética (beleza no trato) e mística (beleza no conteúdo).

“SOU UM guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e os ouvidos

E com as mãos e os pés

E o nariz e a boca.”

(Estrofe 1, Poema IX)

 

O exercício humano requer experiências basais, raiz, a vida nos chama! Há algo em nós ávido por relações fora do engessamento de rótulos, dogmas, teorias e telas do mundo on-line. O senso de conexão com a natureza que integramos é imprescindível no exercício de ser gente. Tanto quanto crianças andarem descalças e brincarem com terra, precisamos olhar para o alto / lado e nos reconhecermos como iguais, ainda que diferentes.  Em certa e justa medida, talvez SEJAMOS UM, mesmo sendo vários.

A internalização consciente de alguns agendamentos são bem-vindos, quando não salvam vidas, podem poupar um tempo danado. Inevitável resgatar dois conceitos que me acompanham desde pequena e passaram a compor minha axiologia, por mim assim associados: cada um percebe o que está preparado para perceber; então cautela, para o bem da comunicação, digas o que pensas mas penses como o diz.

Quando essas abstrações me foram apresentadas, ainda não tinha tido contato com uma das bases da filosofia clínica: Protágoras (“o homem é a medida de todas as coisas”) e Schopenhauer (“o mundo é minha representação”). Muito menos tinha vivido, à época, o que até hoje dei conta de viver. Leituras e práticas feitas, repertório ampliado, temperado por boas doses de choro e riso, deixo o meu: obrigada, Mãe!

“Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.”

(últimos versos, Poema IX)

*Ana Rita de Calazans Perine

Filósofa Clínica, Escritora, Pesquisadora, Educadora, Mobilizadora Social e Empresarial. Autora da obra: "Transparências e Transposições - ensaios sobre o existir e o viver em sociedade", dentre outras.

Canela/RS

**Artigo originalmente publicado na edição primavera/2024 na revista da Casa da Filosofia Clínica.

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