“... que são portas e grades ao viajante que aprendeu a bater asas e conheceu a arte de ultrapassar paredes?”
Hélio Strassburger
O processo de libertação
existencial que, não raras vezes, acontece em clínica, desencadeia uma série de
eventos, os quais atingem tanto o partilhante quanto as pessoas de seu convívio
social. O surgimento desse aspecto de revolução pessoal, pode ultrapassar
fronteiras e ressoar em seu entorno, causando efeitos de autogenia coletiva,
afastamentos, reconciliações, novas relações... Vou falar um pouco sobre
algumas percepções nesse sentido.
É possível que o trabalho em
clínica filosófica desencadeie desajustes autogênicos, ou seja, a pessoa muda e
o entorno das relações perde sentido, completa ou parcialmente. O partilhante
pode sentir-se sozinho, não conseguir mais conversar ou estabelecer conexões
com pessoas e coisas às quais tinha interesse. Essa é uma questão, sentir-se
estranho em fase de transição autogênica, sentir os outros antes familiares,
agora estranhos.
Outra coisa que pode acontecer é
que as pessoas no entorno dessa que faz a clínica, não consigam acompanhar o
seu processo de transição autogênica, ou seja, nem sempre é fácil para amigos,
familiares, companheiros, assimilarem que o partilhante mudou, que seu
comportamento, visão de mundo, buscas, significados... são outros ou, até
mesmo, que suas questões centrais continuam as mesmas, porém agora ganhando
luz, adquirindo expressividade suficiente para bancar suas escolhas diante de
olhares nem sempre de aprovação.
Bem, é compreensível que, pela
força dos agendamentos vivenciados, as pessoas tendam a ver algum membro de seu
grupo a partir das experiências anteriores, sejam elas significadas como
positivas, negativas ou de outra ordem ainda sem tradução. Um adolescente, por
exemplo, que tentou suicídio três vezes durante um certo período, em outro
momento, já superada essa questão, pode ter alguma atitude, como uma ausência
breve das redes sociais, interpretada, significada como uma possível nova
tentativa de suicídio. Dado padrão e dado atual, em processos de transição
autogênica, podem se confundir.
O que quero dizer é que, muitas
vezes, a pessoa superou situações e está em outra sintonia, mas os familiares,
amigos...ainda não superaram as questões vivenciadas com ela. Assim, estão em
frequências distintas, causando inevitavelmente desconfortos nas relações,
distanciamentos. Isso me parece ser algo natural no contato humano e exige o
respeito à caminhada que cada um vivencia no curso da vida que se apresenta em
sua singularidade. Mas, na prática, isso pode causar sofrimentos, afastamentos,
entendimentos.
Algo interessante de notar é que
familiares e amigos podem puxar a pessoa para trás, atrapalhar, ao querer que
ela permaneça onde está ou que seja como sempre foi, e por vezes conseguem
fazer isso. A própria ideia de normalidade e a doençalização dos comportamentos,
contribui e autoriza para que a família e amigos passem a agir assim. É preciso
prestar atenção ao movimento das vidas, algumas vezes mais fluido do que
tendemos a perceber.
Alguns familiares e pessoas
importantes no agendamento do partilhante, podem perceber e querer que ele viva
de acordo com uma visão de mundo, axiologias, princípios de verdade que não o
representam, dificultando os ajustes de equilíbrio e a expressividade de
determinadas singularidades. Por vezes, é preciso ter uma grande força
existencial para superar essas verdades impostas e romper com interseções
causadoras de freios existenciais indesejados, outras vezes é preciso romper
com as próprias verdades inventadas ou perceber que essas fazem sentido e
seguir a caminhada amparada por elas...
Algo bonito de observar é a
postura de algumas pessoas de nosso convívio e interseção quando nos ajudam a
superar obstáculos e a guiar autogenias necessárias. Um pouco de solidão se
dilui nesses instantes de construção compartilhada. Pensando na categoria
relação e no tópico interseção de estrutura de pensamento, essas pessoas podem
ser justamente a inspiração para seguir adiante na reinvenção da vida em busca
de dias melhores. Isso é uma força potente, um poder. Poder ser com o apoio de.
Sentir-se amparado na travessia. Importante para alguns.
Caminhar junto, ainda que os
processos autogênicos nos coloquem em contato com a solidão, já que cada um
vive o seu, a sua maneira. Sim, solidão e amparo, reclusão e companhia podem
compor músicas existenciais em meio aos ruídos da vida. É um pouco este o
trabalho do filósofo clínico, estar junto com a pessoa, em seus momentos de
descoberta, ensaio, reinvenção, travessia. A aplicação do “phármakon” pode ser
remédio ou veneno. É preciso estar ciente da farmácia interna que a pessoa usa
e das suas possibilidades de ampliação, bem como ao surgimento dos efeitos
colaterais e como gerenciá-los.
Algo curioso é que, os processos
autogênicos acontecem, não apenas com o partilhante, mas, em alguns casos, com
o seu filósofo clínico. Isso ocorrendo, a pessoa acompanha, mesmo que
intuitivamente, esse fenômeno. Afetando e sendo afetada pelas sintonias. O
contato humano gera belas histórias no partilhar do consultório semanal, desde
que os marinheiros se disponham a navegar com alguma intencionalidade regida
pelo papel existencial cuidador, sem perder de vista a singularidade.
*Dionéia Gaiardo
Filósofa Clínica. Escritora. Mãe
do Gael.
Tapejara/RS
**Referências:
DERRIDA, Jacques. A farmácia
de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.
STRASSBURGER, Hélio. Pérolas
Imperfeitas: apontamentos sobre as lógicas do improvável. Porto Alegre:
Sulina, 2012.
***Texto originalmente publicado na edição primavera/2024 - Revista da Casa da Filosofia Clínica.
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