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Unanimidade científica?*

Amigos, não existe “a posição da ciência”. Como mostraram Bachelard, Kuhn, Feyerabend e muitos outros depois deles, a idéia de uma posição unitária da ciência não passa de uma idealização, de uma sinédoque, de uma personificação.

"A ciência" não afirma nada; "a ciência" não sustenta posição nenhuma. Quem afirma, quem sustenta as suas posições, são "os cientistas" e "os grupos de pesquisa". E eles não afirmam nada em uníssono, eles não pensam em bloco: não existe unanimidade em nenhum campo científico.

Como diz Feyerabend em "Ambiguità e armonia: lezioni trentine", "o monstro 'ciência' que fala com uma única voz é uma colagem feita por propagandistas, reducionistas e educadores. Dizer que 'somos obrigados a tomar a ciência como guia em questões relacionadas à realidade' não é só errado – é um conselho que não faz sentido". Afinal, em todos os ramos da investigação científica – na física, na biologia, na sociologia, na psiquiatria, na economia, na climatologia, na epidemiologia... – há os cientistas que adotam a posição padrão naquela época e naquele lugar, e há os que nadam contra a corrente.

Quando tomamos a voz de um cientista como a voz da própria ciência, simplesmente adentramos o domínio poético do pensamento metonímico: tomamos uma voz concreta e particular como se fosse a posição de todos os cientistas de todas as regiões científicas.

Em outras palavras: quem quer que advogue alguma “unanimidade científica” é ou ignorante, ou manipulador.

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Isso significa que devemos abandonar as ciências? É claro que não. O que precisamos é compreender o seu processo de produção, para que possamos valorizar, apoiar e financiar o trabalho científico – e para que aprendamos a ter precaução contra a utilização do discurso científico em benefício de grupos cujos interesses econômicos e políticos não visam ao bem comum.

*Prof. Dr. Gustavo Bertoche

Filósofo. Mestre e Doutor em Filosofia. Professor. Filósofo Clínico. Escritor. Musicista. Autor da obra: "A dialética do real na epistemologia de Bachelard", dentre outros. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de 'Doutor honoris causa'. 

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