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Considerações de um filósofo clínico*

Antes da estreia de “Divertida Mente 2” escutei alguns partilhantes falando sobre si baseados no primeiro filme. Usando-o como um vice-conceito. Resolvi assistir o lançamento do segundo filme no intuito de estar próximo da semiose. Aquilo que será narrado a partir de agora acontecerá como uma reflexão filosófica de um terapeuta, formado em filosofia, que usa como metodologia, para mediar seu relacionamento em terapia, a filosofia clínica. Logo prevalecerá o pensamento daquele que durante as horas de trabalho, e fora delas também, veste o papel existencial de filósofo clínico.

O longa-metragem apresenta uma personagem chamada Riley Andersen. A narrativa se divide em acontecimentos apresentados simultaneamente, na relação entre o mundo exterior e interior. Uma é o cotidiano dessa personagem, a outra é como as emoções dialogam em sua mente, a medida em que vive. Nesta representação mental as emoções alegria, tristeza, medo, raiva, vergonha, tédio etc. são personificadas.

A curiosidade criada ao ver o segundo filme e geradora desta escrita, acompanhada neste momento por você, caro leitor, é: apresentar a ansiedade como uma emoção.

Como, no início do século XIX, a chamada disfunção de atividade mental, e também, neurose de ansiedade ou de angustia é nominado, dois séculos depois, como uma das emoções? Como algo que no saber médico é designado como doença, e através do diagnóstico dá abertura ao uso de medicação, é uma emoção? É possível medicar uma emoção? Há doença na emoção? A ansiedade é realmente uma emoção?

Não é possível, na presente publicação, apresentar todas as dúvidas. Tão pouco deliberar sobre quais conclusões me vem acerca delas. O mais importante neste espaço é cativar você, ledor, estimulando tais inquietações.

Como profissional da filosofia clínica aprendi que, através da linguagem, o partilhante a todo momento tenta transportar os conceitos que estão em sua malha intelectiva para que eu consiga entender como ele está naquele momento. Para isso é preciso investigar o uso das palavras. Elas são a forma abstrata de dirigir ao outro a gama de relações internas em acontecimento.

Por tanto como terapeuta algumas vezes já ouvi falar sobre “ansiedade” em consultório. Tendo em vista que a língua é formada por unidades de palavras que ganham sentido no senso comum, escutar esse termo é quase inevitável. A questão é que o método impele entender qual é o sentido do falado para o falante. O interessante na atitude é verificar que uma mesma palavra para cada indivíduo tem uma significação diferente.

Nas traduções da “ansiedade”, em terapia, são trazidos sentidos fora do senso comum ou até das características do diagnóstico. Para nós, filósofos clínicos, ter acesso a compreensão do que se diz nos encaminhará para “lados” diferentes do passo-a-passo do processo terapêutico.

Se o partilhante retrata a “ansiedade” como pensar vários temas, ao mesmo tempo, a cada milésimo de segundo e isso o deixa cansado, talvez seja profícuo investigar o funcionamento do tópico ação e como os conceitos estão em jogo nesse movimento. Se diz que é um frio na barriga, um tremor ou suar indiscriminadamente, sabemos que estamos falando acerca do sensorial e da ida em direção às sensações. Se relata a ansiedade quando pensa no passado ou no futuro, metodologicamente a questão se apresenta em torno da categoria tempo relacionando-se a espacialidade intelectiva, nos deslocamentos longos no tempo. Se a ansiedade está em não saber o que vai acontecer, estamos falando das equivocidades geradas pelo exercício da epistemologia.

Por isso é tão importante sair da tipologia. Ela fecha as possibilidades de compreender, na minúcia, o fenômeno humano em acontecimento. O diagnóstico reduz a capacidade de compreender o indivíduo em sua complexidade singular, pois a singularidade está justamente nos detalhes. A linguagem é mediadora das relações entre seres coexistentes. É uma forma de lidar uns com os outros. Apesar de seu uso universal, cada palavra tem um uso específico para cada pessoa, por isso será sempre inviável o trabalho através dos tipos no cuidado na terapia.

Contudo é interessante constatar o quanto é importante obter a visão subjetiva do transmissor. Movido por inquietudes, escrevo este texto para falar sobre um assunto que a muito me chama atenção tanto em função das terapias, quanto ao perigo social embutido nela.

Sobre o filme percebi que acessar aquele conteúdo sem a partilha, de nada adiantou para esclarecer qualquer coisa sobre meus partilhantes.

O interessante para terapia é a gama de sentidos e significados traçados pelo comunicador. Sua fala tem a possibilidade de ser viabilizada com apoio do filme. Mesmo tendo-o visto a única diferença é que talvez possa saber a que cena a pessoa se refere, mas que todos os significados têm de vir dela. Assim sendo, mesmo que você, terapeuta, não conheça precisamente o objeto que apoia a expressividade de seu partilhante, não há problema. O importante é que ele consiga transmitir o que está em sua perspectiva.

* Paulo Alves Filho

Filósofo. Filósofo Clínico. Escritor.

**Texto originalmente publicado na edição de primavera/2024 na revista da Casa da Filosofia Clínica.

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