O horário da manhã em dias de clima ameno, revela o orvalho nas roseiras em flor. A luz da aurora é de uma nitidez especial para registrar as cores do jardim. Ao percepcionar os detalhes das pétalas, não raras vezes se encontra minúsculos visitantes em busca de abrigo, comida, alguns namorados. O que é que esses bichinhos podem nos revelar sobre o micro bioma que se criou ali?
Em direção às sensações, o cheiro
de cada rosa fotografada se mistura na mente, formando um perfume natural
daquele efêmero instante disponível. Amarelos, brancos, rosas, laranjas,
vermelhos misturados aos diversos tons de verde, compõem o remédio que a vista
precisa para iniciar bem o dia. Com um espectro de cores e aromas, a cada
floração essa festa aparece. É um fenômeno importante na vida da partilhante.
E nem precisa esperar pela
primavera, é no inverno que as flores de amor-perfeito desabrocham. Para quem
possui o submodo percepcionar, todas as estações podem ser fonte de inspiração.
O jardim pensado integra-se com as surpresas que brotam do solo, nesse sentido,
podemos pensar em uma construção compartilhada entre a jardineira e a natureza,
ao menos quando não se poda ou arranca tudo aquilo que nasce naturalmente.
A malha intelectiva com esses
recursos, trata de sentir e fotografar para em outros momentos rever; em
deslocamento longo é possível revisitar toda essa farmácia, um combo sensorial
através do abstrato da memória. Essas esteticidades seletivas da fotografia e
jardinagem, cumprem, nessa estrutura de pensamento, a função de ser remédio
existencial.
Há diversas formas de colher o
jardim para prolongar seus benefícios...
Especialmente no caso de ele
apresentar-se enquanto paixão dominante, com rastros constantes na
historicidade do sujeito…a identificação desse dado padrão aliado a
expressividade de bem-estar exibida pelo sujeito quando em direção às sensações
do jardim para criar e reinventar-se, é o presente que o filósofo clínico ganha
para devolver ao partilhante sempre que ele precisar deste procedimento
clínico.
Galhos de lavanda com flores nas
pontas exalando aromas, são colhidas e colocadas em um vidro, banhadas pelo
azeite de oliva. Em outro frasco, as flores da camomila ficam no óleo de coco.
Mais tarde, com o devido tempo guardadas no escuro do armário, se tornarão os
oleatos, com propriedades cicatrizantes, hidratantes e calmantes. A pele recebe
essa dose de cuidado que as plantas possuem.
O sentido do tato é estimulado em
cada processo, desde o toque durante o plantio e a colheita, até a seleção e
manipulação do produto deslizando sobre a pele, resultando em hidratação e
tratamento naturais, com conforto e cheiro que agrada. O bem-estar subjetivo
está relacionado a colheita de sentidos aflorados na interseção com as rosas,
lavandas, camomilas, no fazer os óleos; mais uma esteticidade seletiva.
Poderosa farmácia para lidar com
as dores da vida, disponível gratuitamente no quintal de casa. Ao menos é assim
para essa singularidade. Uma escolha ao viver o momento presente em intimidade
com sua natureza, abandonando as ideias complexas e conflitos. O fazer no
jardim e com o jardim é um comportamento e função que aparece em momentos
específicos.
O relato dessas atividades em
clínica, vem entrelaçado a uma expressividade dos sorrisos, distante das
preocupações e problemas insolúveis dos quais busca se libertar. Em um mundo
onde não se pode sentir muito, viver essas coisas pode ser considerado loucura,
especialmente porque não é uma atividade vinculada ao ganho financeiro. E que
gozo ela tem nesses momentos, que respiro de alma!
Fazer algo para si buscando
aperfeiçoamento e satisfação pessoal nem sempre é bem-visto, mas às margens da
lógica do sistema neoliberal, mundos singulares seguem sendo arquitetados e
construídos, revelando belíssimas possibilidades de ser, compartilhar e viver
quando a pessoa encontra escapes para entrar em interseção positiva consigo
mesma, retirando de sua originalidade o combustível para seguir em frente.
É no trabalho de escuta
compreensiva, possível somente a partir da chegada do partilhante, que aparece
a matéria prima singular capaz de compor - através dos exames categoriais,
estrutura de pensamento e submodos - o mapa existencial de cada pessoa, com suas
fronteiras e possibilidades de expansão. É necessário ao estudante de Filosofia
Clínica, perceber que este é um contrafluxo das terapias tradicionais
tipológicas e seus emaranhados de teorias e conhecimentos “a priori”.
Como Hélio Strassburger nos diz:
“O novo paradigma da Filosofia Clínica constitui um divisor de águas, sob
muitos aspectos ainda incompreendido. No entanto, encontra o reconhecimento e a
valorização em seus partilhantes, os quais vivenciam um refúgio acolhedor para
as atividades emancipadoras de suas singularidades”. (2021, p. 97).
Ao guardar as sementes do jardim
para o plantio das cores, aromas e sensações dos novos ciclos, a partilhante
também se empodera com o vice-conceito dado pela natureza, o de que as coisas
se modificam, tem suas estações, morrem...para em algum momento futuro voltar a
ser vida, brotar, desabrochar...
*Dionéia Gaiardo
Filósofa. Filósofa Clínica. Escritora.
dioneiagaiardo@gmail.com
**Texto originalmente publicado: dioneiagaiardo.wixsite.com/filosofiaclinica
***Referências:
Strassburger, Hélio. Filosofia
Clínica: Anotações e reflexões de um consultório. Porto Alegre: Sulina,
2021.
Gaiardo, D., Fontoura, F.,
Strassburger, H., & Caruzo, M. A. Dicionário de Filosofia Clínica.
Porto Alegre: Revista Casa da Filosofia Clínica. Edição 08/outono, 2024.
Disponível em:
https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2024/03/revista-da-casa-da-filosofia-clinica-outono-2024-dicionario.html.
****As expressões em itálico que aparecem no texto referem-se a linguagem específica do método em Filosofia Clínica. Para conferir o sentido e significado delas, acessar o link do dicionario de Filosofia Clínica: https://casadafilosofiaclinica.blogspot.com/2024/03/revista-da-casa-da-filosofia-clinica-outono-2024-dicionario.html.
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