O tempo é uma das cinco categorias que compõem a primeira etapa do método. Alguns partilhantes possuem uma forte relação com essa categoria, que aparece sessão após sessão. Uns mais pautados pelo tempo objetivo, cronológico, outros pelo tempo subjetivo em uma relação muito íntima e específica com ela. Podem aparecer, por exemplo, dificuldades em cumprir horários, compromissos, gerando em outras pessoas de convívio social, interpretações, desconfortos existenciais, significados sobre a incapacidade de adequar-se ao padrão exigido.
Algumas almas simplesmente não
nasceram para o tempo cronológico. Em alguns casos, a obrigação de enquadrar-se
nele anula inclinações pessoais, sonhos, buscas. Ao passo que, compreender sua
relação com essa categoria e respeitar seu tempo subjetivo, possibilita que a
pessoa volte a respirar, criar, sentir-se adequada em algum lugar dentro de si
mesma – observe como isso interfere na categoria lugar e padrão autogênico –
por isso, falamos em adequações em clínica filosófica.
Pode acontecer de uma das
categorias impactar tanto na vida da pessoa ao ponto de inviabilizar
interseções com outras pessoas ou consigo mesma. Identificar a relevância de
uma categoria na composição com os estudos da estrutura de pensamento
partilhante e os submodos, pode fazer uma vida opaca encontrar luz, caminhos,
novos horizontes, alternativas para uma vida melhor.
Depois de um ano de trabalho em
construção compartilhada com um partilhante, ouvi atentamente quando mencionou
ter desistido de uma clínica psicológica porque a pessoa que lhe atendia
repetia que “o tempo é curto, somos velhos, não temos mais tempo a perder,
precisamos agir...”, essas falas – agendamentos máximos – eram causa de mais
ansiedades e travamentos, sentia-se paralisado segundo ele.
Diante dos agendamentos
equivocados sobre a categoria tempo emitidos pela terapeuta, possivelmente
pautada por sua percepção, distante do que o partilhante apresentava e
precisava, a interseção se desfez. Ele resolveu procurar ajuda em outras fontes
e encontrou a filosofia clínica. Esse é um exemplo pontual dos riscos de
afrontas e ineficácia de métodos que utilizam conhecimentos a priori, dentre
outras questões que poderiam ser levantadas. Nesse caso em específico, a busca
que o partilhante apresentava e que fazia a terapeuta agendá-lo com a urgência
do tempo, era apenas um assunto imediato. Com o passar das sessões foi ficando
mais claro que o assunto último estava em outro ponto, embora houvesse relação
com a busca que aparecia no discurso inicial.
O feedback do partilhante sobre
nosso trabalho em filosofia clínica dá conta de confirmar a beleza desse
método, sua eficácia e alcance. Ao sentir-se ouvido, acolhido, compreendido em
sua singularidade, em suas relações categoriais, percebemos que essa alma que
eu atendia, era jovem e cheia de vida, extremamente criativa, precisando
libertar-se de alguns agendamentos para experimentar outros ares. Via
esteticidade seletiva, o desenho e a pintura passaram a funcionar como lugar de
livre experimentação, um ensaio para sua expressividade nas relações. Além
disso, ele buscava – no tocante a categoria tempo – vivenciar o momento
presente, através de seus sentidos e expressividade.
Estimulando o sensorial e
reservando o abstrato para os planos sobre suas esteticidades seletivas, ganhou
tempo. Buscou e fez curso de respiração, um processo que desencadeou a
descoberta da inutilidade do rivotril diante de tamanho remédio existencial: respirar
corretamente. Assim, os travamentos pouco a pouco se desfazem, enquanto se
percebe que o tempo é melhor aproveitado por identificar e acessar sua farmácia
interna, enfraquecendo o uso de venenos existenciais que antes cumpriam um
papel importante, mas que hoje não fazem mais sentido.
É tão interessante a observação
dos deslocamentos existenciais que ocorrem e as relações com a categoria tempo
do partilhante; e pensar que esse trabalho é único, uma arte ao decifrar
inquietudes, desconfortos, inadequações, as quais, o partilhante tem transformado
em bem-estar, autocuidado, “um sentimento de otimismo interno” que relata
sentir pela primeira vez na vida. A manutenção e o aprimoramento desse
sentimento aparecem agora como busca, indicando um lugar de conforto para onde
se direciona existencialmente. Para isso, não importa a idade e sim a
disposição da alma em explorar territórios recentemente descobertos. Talvez
mais adiante descubra e explore outros inéditos de si mesmo...
É importante salientar que o
exemplo mencionado é um pequeno fragmento de um caso clínico, bem como o texto
todo fala de possibilidades em que a categoria tempo pode aparecer; ao cuidador
cabe exercitar o olhar fenomenológico e a postura aprendiz para manter a
abertura filosófica que o método solicita. A Filosofia Clínica é um paradigma
libertário.
Para nós, a singularidade é a
musa – ainda invisível em um mundo onde o que impera é a transformação de
comportamentos em doenças, medicalização, lucro – isso não quer dizer que ela
não esteja habitando a alma de cada pessoa, à espera de uma oportunidade para
se fazer presente. Trabalhar como “aprendiz de singularidades”, usando uma
expressão do Caruzo, é ter o privilégio de estar diante desse fenômeno das
múltiplas e irrepetíveis formas em que a musa se diz.
*Dionéia Gaiardo
Administradora. Filósofa. Escritora. Filósofa
Clínica. Mãe do Gael.
Tapejara/RS
**Texto originalmente publicado na edição de inverno/2024 da revista da Casa da Filosofia Clínica.

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