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Fora de foco***

O filme Desconstruindo Harry é de 1997. Tem a duração de 1h35min. Escrito, dirigido, representado por Woody Allen e convidados. A obra se aproxima da nova abordagem terapêutica da Filosofia Clínica, especialmente com roteiros de autogenia, espacialidade intelectiva, e outros. No entanto se distancia, quando o fenômeno humano singular é tratado como algo universal, coisificado, refém de tipologias, estereótipos, protocolos.    

Um aspecto vinculado aos deslocamentos intelectivos, se refere a pluralidade de expressões, derivações, para integrar o roteiro, tendo por base uma só matriz descritiva. Em outras palavras, trata-se de textos dentro de um texto, num convite para o leitor/espectador acompanhar a interseção do centro com suas margens. Vivenciar as sensações que se oferecem na história.

No mesmo sentido, um pouco antes de ir ao cinema, autor e obra se confundem em sua redação. Os personagens se mesclam na criatividade dos roteiros. O texto se assemelha a uma autobiografia para as telas.  

O filme convida a superar as cenas iniciais, onde facilmente se poderia cair numa armadilha interpretativa, acreditando saber, de antemão, do que se trata, para onde a obra se dirige. A trama surpreende o tempo todo, onde realidade e ficção se reapresentam para dizer e desdizer quase tudo.   

A escritura do autor se desdobra para encontrar o cinema. As múltiplas estórias em um mesmo roteiro elaboram - com o espectador - um contrato de lógica absurda, próximo do drama kafkiano. Múltiplos papéis existenciais redigem seus originais, onde as franjas e periferias integram uma coisa para ser outra.  

O discurso da personagem ao invadir a casa de Harry Block (Allen): “Você acabou com a minha vida e agora vou me matar aqui, na sua frente, no seu carpete”, o escritor: “você é uma desequilibrada”, ela rebate: “Sim, por isso você me escolheu! (...), quem mais me convenceria a fazer sexo oral no enterro do meu pai?”, a cena prossegue com outros diálogos desencontrados, ameaças, acusações, relação compartilhada pela desestrutura.    

Pouco depois, em nova cena, com a trilha sonora de “garota de Ipanema”, o filme prossegue, agora em nova perspectiva, convidando o espectador a experienciar uma mudança de rota, onde o enredo principal dialoga com suas derivações.        

A obra é contextualizada num ambiente vintage, onde o ator/escritor/roteirista/diretor trabalha em seu apartamento, a meia luz, dedilhando sua Remington, lugar para expressão de suas ideias e criatividade. Um refúgio para sua singularidade.   

Em outro momento Harry Block aparece deitado num divã, com o analista a sua cabeceira. Fato recorrente numa obra de inspiração psicanalítica, apesar das críticas que o autor lhe concede. Ao longo da história surgem nuances da escritura de Woody Allen, com sua digital impressa nas cenas e personagens de sua obra. Muitas vezes se tem a sensação de ver e ouvir sua voz por todo lado.   

A sequência traz o escritor novamente em terapia, dizendo de sua preferência por prostitutas: “não consigo me acertar no amor (...) eu ainda adoro prostitutas, sabe?  você faz o que tem de fazer, paga e elas vão embora. Você não tem que falar de Proust, filmes, e mais nada”.

Quando a terapeuta faz uma intervenção: “O conto que você estava trabalhando” ... Harry relembra: “a câmera está fora de foco. O ator está fora de foco. O Mell está fora de foco”. (...) Quando chega em casa a mulher diz: “você está estranho”, ele: “sim, estou fora de foco”, ela: “você está borrado”, ele: “estou passando por uma coisa que não sei o que é. (...) Não consigo escrever, não vem”.

Na cena seguinte o personagem se apaixona por sua terapeuta. O narrador onipresente: “Para Epstein, finalmente encontrava a mulher ideal, alguém que o compreendia”. Mais uma vez oferecendo uma leitura não-linear, Harry encontra na rua seu outro eu, aquele do momento inicial do filme, onde conversam. “Quem é você?” ele pergunta, o outro responde: “sou quem você criou e agora não me reconhece? (...) eu sou você, um pouco disfarçado.”

Em outro momento, quando sua nova terapeuta, em sessão com o escritor, deixa de lado seu papel existencial para ir à sala ao lado, onde encontra o personagem do divã sendo outro - num raro instante onde Harry Block e Woody Allen são o mesmo -, passam a discutir sua relação, tendo como motivação um relato da terapia. Uma estética para traduzir realidade e ficção como algo ainda sem nome. Em Filosofia Clínica a fenomenologia da hora-sessão se aproxima desse outro lugar onde as pessoas se encontram.   

A seguir, em um novo desdobramento do filme, Harry Block vai ao submundo e encontra o anjo decaído. Um breve embate entre eles: o escritor: “eu sou mais poderoso que você, pois sou um grande pecador e você é um anjo caído (...) Uma vez quase atropelei um crítico literário, desviei no último instante”. O anjo caído: “quer que ligue o ar-condicionado?” Harry: “tem ar-condicionado aqui?” o anjo: “Sim, destrói a camada de ozônio”.

Questionado das razões por estar no inferno e não no céu, o escritor responde pelo anjo: “é melhor mandar aqui do que servir no céu, acho que foi Milton que falou isso”.

Em outra cena, Harry vai receber uma homenagem na universidade onde estudou. Para isso convida uma prostituta para lhe acompanhar, chegando lá é preso, acusado de sequestrar seu filho. Os amigos pagam sua fiança, ele é solto.

Após, chega à homenagem da universidade e pergunta aos colegas: “posso levar mais alguém?”.  Quando respondem: “é claro, o sonho é seu! Todos esperam para homenageá-lo, afinal, você os criou.” Em suas reflexões Harry pensa: “Como pode um cara que não funciona na vida real, funcionar na arte?”. Uma personagem tenta traduzir: “Seus livros parecem um pouco tristes na superfície, por isso eu gosto de desconstruí-los, pois no fundo são felizes.”

Nesse sentido o autor compartilha uma história recheada de estórias, para descrever-se em seus escritos. Uma ficção por onde a realidade transita, revelando aspectos desconhecidos. Ao retornar para sua casa e reencontrar sua Remington, tem a ideia para um romance. Segundo ele: “A nova obra irá oferecer uma descrição de como nossas vidas consistem na forma que escolhemos distorcê-las”. Sua escrita - mais uma vez - salvou sua vida.

*Hélio Strassburger

Filósofo Clínico

Porto Alegre/RS

**Texto publicado em: www.heliostrassburger.blogspot.com (Descrituras) 

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