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Ponto Cego***

O conceito de paradigma é determinante nas concepções de mundos como vontade e representação, tanto para uma perspectiva subjetivista quanto objetivista. A história da ciência e do pensamento humano é marcada por contínuas rupturas paradigmáticas. 

Teorias e crenças antes consideradas inquestionáveis foram por diversas vezes descartadas conforme descobertas, novos dados e perspectivas vieram à tona. Esse processo recorrente nem sempre ocorre sem resistência ou violência. Apegos a paradigmas estabelecidos, o que não é raro, pode criar um ponto cego epistêmico onde a própria estrutura de conhecimento em voga impede a percepção das suas limitações.

Os paradigmas são estruturas fundamentais que moldam a forma como interpretamos o mundo. Segundo Morin (2005, p. 128), "um paradigma impõe seleção e organização do conhecimento, mas também exclui o que não se encaixa". Essa seleção pode se tornar um viés cognitivo ao restringir a percepção exclusivamente ao que reforça o paradigma vigente, gerando um ponto cego epistêmico. Esse fenômeno é perigoso porque pode impedir a revisão crítica das bases de conhecimento, favorecendo a perpetuação de dogmas.

Morin também enfatiza que a verdade científica não é absoluta, mas sim um processo contínuo de revisão e adaptação. Conforme aponta o autor, a complexidade exige que o conhecimento esteja sempre aberto à incerteza e a possibilidade de erro (Morin, 1999). Essa perspectiva aproxima-se do conceito popperiano de falseabilidade, que defende que uma teoria deve ser testável e passível de refutação para ser considerada científica ou plausível.

Karl Popper, no conceito de falseabilidade como critério essencial para a demarcação do que possa se caracterizar como científico, considera que uma teoria só pode ser válida, em princípio, se for passível de refutação por experiência empírica. Desse modo, a ausência dessa possibilidade pode conduzir a dogmatização do conhecimento, transformando modelos explicativos em crenças inquestionáveis. 

Pois, quando paradigmas se tornam imutáveis e universais, não apenas restringem a capacidade crítica, mas também geram resistência a qualquer possibilidade de mudanças. O viés do ponto cego atua nesse contexto como um reforçador da crença na infalibilidade de determinadas concepções, dificultando a aceitação de novas perspectivas, de mudanças, de transformações e do avanço do conhecimento.

O modelo geocêntrico de Ptolomeu dominou o pensamento astronômico por mais de um milênio, apesar de crescentes contradições e anomalias inegáveis. Foi necessária uma revolução paradigmática iniciada por Copérnico e consolidada por Galileu para que um novo modelo pudesse se estabelecer. O ponto cego cognitivo superdimensionado pela poderosa estrutura de poder dogmática e violenta da época impediu que os estudiosos daquele tempo percebessem ou considerassem a fragilidade e inconsistência do sistema vigente, pois estavam imersos em um quadro de referências baseadas em crenças e imposições que tornavam inviável e perigoso qualquer outra abordagem.

Teorias estão em movimento, não raro, são construções compartilhadas de conhecimentos em transformação e, necessariamente, são passíveis de evolução, de mudanças, de refutação. "Uma teoria que não pode ser refutada por qualquer evento concebível não é científica" (Popper, 2009, p. 41). Esse critério pode contribuir para que os paradigmas não se tornem dogmáticos ao se dispor a revisar seus pressupostos sempre que evidências contrárias surgirem. Mas quando um paradigma é questionado, não apenas um conjunto de fatos está posto em xeque, mas também, a própria estrutura cognitiva, cultural e epistemológica de uma comunidade ou de uma época. Por isso e não por acaso, quebra de paradigmas podem ser tão difíceis, dolorosos, perigosos e complexos.

O abandono de um paradigma estabelecido pode gerar crises de confiança no conhecimento, em comunidades, em mundos como vontade e representação. Para comunidades ou pessoas imersas em modelos, a mudança pode parecer ameaçadora e a aceitação de que muito do que se acreditava pode estar errado ou não servir mais, pode se tornar um desafio quase intransponível. Mas incertezas como essas são essenciais para o progresso, uma vez que "toda descoberta genuína é precedida por um problema e por uma tentativa de resolvê-lo por meio de conjecturas ousadas e sua subsequente eliminação crítica" (Popper, 2004, p. 78).

O ponto cego epistêmico, é um fenômeno cognitivo intrínseco aos processos de construção de conhecimento e paradigmas que são sempre importantes na protagonização e organização da interpretação das realidades, dos mundos como vontade e representação. No entanto, quando esses fenômenos epistemológicos não são submetidos ao crivo da falseabilidade, corre-se o risco de tornarem-se meros dogmas.

A perspectiva popperiana nos lembra que o progresso do saber depende da capacidade de testar e refutar nossas próprias concepções. Como pensarmos, por exemplo, na possibilidade de uma determinada Estrutura de Pensamento efervescendo-se ao ponto de numa dinâmica tópica entre Hipótese, Experimentação e Princípios de Verdade, resultar em profundas ressignificações na representação de mundo de um partilhante. Noutras palavras, causando uma quebra de paradigmas para novas possibilidades dos modos de ser, de saber e de viver.

*Prof. Dr. Pablo Eugênio Mendes

Analista de Sistemas. Filósofo. Mestre e Doutor. Escritor. Musicista. Filosofo Clínico. Em 2019, por indicação do Conselho e Direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de Doutor Honoris Causa

Uberlândia/MG

**Texto originalmente publicado na edição outono/2025 da revista da Casa da Filosofia Clínica.

Referências:

MORIN, Edgar. O Método 1: A natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 1999.

MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2009. 

______. Conjecturas e refutações: o progresso do conhecimento científico. Brasília: UNB, 2004.

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