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Um breve relato terapêutico***

Em algum momento da minha vida as coisas não caminhavam bem. Os assuntos imediatos eram, principalmente, os conflitos éticos que rolavam no meu trabalho, relacionados aos colegas e clientes, as dificuldades de aceitar o mundo como ele é, e entender para onde eu iria me direcionar dalí pra diante. Pois bem, fui pra terapia. Meu plano de saúde dispõe de psicólogo. E assim, fui buscar ajuda.

Era uma boa psicóloga e tínhamos uma interseção que habilitava o trabalho, embora desde o início houvesse alguns conflitos na nossa troca, pois era perceptível um ponto de vista divergente sobre questões que pra mim eram fundamentais. Trabalhando minha flexibilidade em relação a isso, pude percorrer um bom caminho por algumas sessões.

Mas confesso que desde o início as consultas eram, em sua maioria, difíceis. Não havia um zelo com assuntos desconfortáveis, e o tratamento era aplicado de maneira repentina, gerando dificuldade de absorver as questões que acompanhavam as sessões e o tratamento dado a elas.

Transitamos relativamente bem nas minhas buscas daquele momento. Lembro quando decidi construir minha casa, onde tinha dificuldade em assumir aquele compromisso, pois envolvia a relação com minha namorada, a questão financeira e outras coisas. Alí tive um apoio incondicional de que este desejo era possível, e assim foi, logo mais tarde colocado em prática.

Mas com o passar das sessões começou a ficar mais claro a limitação do método no tratamento das demandas surgidas. Quanto a querer aprofundar o mesmo assunto da minha dificuldade de aceitar o mundo e suas mazelas, do egoísmo cada vez mais impregnado na sociedade. E isso se estendia ao meu trabalho: metas, clientes sendo tratados como números e não como pessoas, colegas a deriva de um discurso de plano de carreira - “vende bastante que tu sobe de cargo” -. Isso me machucava.

Nestes assuntos a clínica travou. Meu remédio existencial, segundo a psicóloga, era pensar mais em mim. O tratamento era que eu não deveria me importar tanto com os outros e com o que acontece “lá fora”. Para ela, dentro do seu método, minha felicidade dependia do distanciamento destes conflitos. 

Ora bolas! Sou rebelde por natureza, militante de causa, filho de assentados da reforma agrária. Me recordo de ir pra linha de frente lutar desde criança. Agora eu tenho que pensar em mim somente? A partir desse momento todos meus valores e minha visão de mundo não faziam mais sentido?

Como consequência a tristeza foi tomando conta. Meu mundo estava esquisito. A terapeuta construiu outro e queria que eu me mudasse para lá.

Próximo passo. 'Se a tristeza tomou conta, tem depressão'. Mas depressão o psicólogo não trata. E como é de se imaginar, após relutar com a ideia, lá estava eu de frente para a psiquiatra. Após 40 minutos e 500 reais a menos saí de lá com uma amostra grátis de um tal Luvox (antidepressivo), um diagnóstico de depressão hereditária e um calhamaço de receitas.

Pois bem... Foram tempos difíceis... O antidepressivo anestesiou minhas emoções. Só não conseguiu fazer a cabeça parar de borbulhar em ideias complexas. Ou seja, nada do que tratei com terapia e com fármacos resolveu minhas questões existenciais. Serviram somente para embaralhar minha estrutura de pensamento e colocar os conflitos ainda mais em evidência.

Salvo pelo gongo! Minha irmã havia me apresentado a Filosofia Clínica há algum tempo e através dela, eu conseguia trazer à luz o sentimento de que talvez boa parte do que foi trabalhado na terapia não fazia sentido para mim, pro meu mundo. Isto foi fundamental, pois cumpriu uma função de me manter crítico do que recebi como diagnóstico e tratamento.

E após um período afastado da psicóloga voltei a trabalhar novamente. Agora com um filósofo clínico.

E logo de cara fui surpreendido por uma leveza terapêutica que antes não existia. O acolhimento objetivou uma arrancada de descobertas e libertação, agora sem nenhum diagnóstico. Uma construção onde, guiado pelo filósofo clínico, me tornei protagonista. Aprendi comigo a lidar com as questões que me incomodavam. Desenvolvi habilidades, mudei meu padrão autogênico e passei a valorizar minha singularidade, antes deixada de lado em prol de algo que posso chamar de visão universalizada de felicidade. Parei de fumar, curei minha "depressão hereditária", organizei minha vida profissional. Aprendi a lidar melhor com as frustrações e amadureci nas minhas relações, principalmente familiares.

No fim das contas, descobri que posso ser quem eu quiser, e que posso mudar a cada instante. O que me move é algo como Raul escreveu e cantou na clássica Metamorfose Ambulante, pois “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. É uma contagiante condição humana de se viver que só foi possível com a Filosofia Clínica. Sempre com a ciência de que a caminhada é contínua e os obstáculos vão continuar existindo.

Tenho a certeza de que nunca fui tão eu quanto sou hoje.

*Daniel Gaiardo

Aluno da especialização na Casa da Filosofia Clínica

Passo Fundo/RS

**Artigo originalmente publicado na edição primavera/2025 da Revista da Casa da Filosofia Clínica.

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