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Desarrazoados***

 

A palavra possui múltiplas formas de expressão, quase sempre refém de seu uso. Compreender um sentido reivindica uma reciprocidade com suas circunstâncias, a querer dizer sobre a fonte de onde partiu.

João Paulo Alberto Coelho Barreto (João do Rio), nasceu em 05/08/1881 na rua do Hospício, no Rio de Janeiro, partiu em 1921. O autor retratou com maestria sua cidade no início do século XX, ou seja, ao exercitar um aprendizado peripatético, semelhante aos pensadores gregos, caminhava e anotava o que via, sentia, percebia com os óculos de suas possibilidades.

É preciso talento para transcrever a fenomenologia das ruas, sua poética, peculiaridades, personagens, as casas e prédios colocados abaixo para renascer noutra esquina. As pessoas e seus trajes, chapéus, sapatos, convicções, inseguranças. Bem como aquilo que se refugia na expressividade de seus dias.   

João do Rio diz assim: “Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! (...) Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua.” (A alma encantadora das ruas, 2009. Pág. 29)

Em suas andanças o poeta recupera memórias, rascunha amanhãs, e algo mais. Parece querer entender a lógica da transposição da charrete pelo carro a motor. Quase ao mesmo tempo em que descreve as transformações da virada de século, também busca registrar sua história.

Seu espanto filosófico, poético, apresenta uma escrita singular, em tons de uma epistemologia-intuitiva. Suas páginas impregnadas de cotidiano acolhem sensações para seu diário. Sua tradução de espírito vagamundo, diz respeito ao flanar andarilho por entre as múltiplas cidades da mesma cidade.

Os manuscritos de um autor descrevem sua condição peculiar, falam de seu ângulo de visão, se assemelha a um convite para visitar - em perspectiva - seu território pessoal, numa aproximação com sua floresta de inéditos.

O autor refere: “Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel. Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São assim as ruas de todas as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem.” (A alma encantadora das ruas, 2009. Pág. 33)  

Ao pensar com Schopenhauer em seu Mundo como vontade e representação, se pode acessar dados de uma condição singular em seus textos, na expressão de sensações, ideias, vivências e convivências com a surpreendente lógica das ruas. 

A reinvenção da vida acontece com o despertar de um dia qualquer, -que nunca é um dia qualquer - repleto de possibilidades nas andanças pelas praças e calçadas, saboreando um café, a leitura do jornal, folhear livrarias, inaugurar, na provisoriedade do instante, horizontes vagamundos.  

O significado dessas coisas refugiadas no cotidiano, tem a ver com o sujeito em vias de perceber e sentir sua realidade. João do Rio transcreve para suas páginas, a fotografia dos seus deslocamentos. Seus apontamentos sobre a cidade traduzem uma versão sobre as poéticas do lugar.  

Com o poeta: “(...) são ruas da proximidade do mar, ruas viajadas, com a visão de outros horizontes. (...) Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm ideias, filosofia e religião. Há ruas inteiramente católicas, ruas protestantes, ruas livres-pensadoras e até ruas sem religião. (A alma encantadora das ruas, 2009. Pág. 38).

Nesse sentido, ao falar dos espaços cotidianos, João do Rio destaca endereços existenciais por onde a vida acontece. Amores, desilusões, crenças, projetos de vida... A rua, sendo quase-pessoa, adquire feições de quem a frequenta, sua plasticidade se insinua para acolher quase-tudo, sem perder de vista o que escapa, quando se acredita já ter visto tudo o que há para ver.   

O texto onde se pode ler e reler essas narrativas - A alma encantadora das ruas - se assemelha ao velho álbum, por onde a história se imprime nas pedras da calçada, paralelepípedos das ruas, as páginas da memória. Aquilo que permanece enquanto muda. O poeta faz um convite para sentir a novidade em cada esquina. João do Rio, ao abordar sua singularidade, insinua ser multidão.  

*Hélio Strassburger

Filósofo Clínico na Casa da Filosofia Clínica.

**Texto originalmente publicado no espaço Descrituras:  www.heliostrassburger.blogspot.com sob a rubrica: Filosofia Clínica Agridoce 49.

***A foto acima registra o trabalho - a luz de velas - em meio a hecatombe (enchente que nos deixou ilhados, sem água e luz por 3 semanas) que se abateu sobre o centro histórico de Porto Alegre em 2024. 

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