Para falar sobre o décimo tópico
é preciso começar pelo motivo de sua criação. Nos Cadernos, principal
referência pedagógica nos primeiros anos da filosofia clínica, existem
determinações sobre não trabalhar com indivíduos apresentando raciocínio
desestruturado. É descrita a possibilidade deste “tipo” de atendimento sob
consentimento familiar e acompanhamento médico simultâneo à terapia. Há também
a ideia de definir ou diagnosticar o raciocínio bem estruturado e o contrário
da boa estruturação.
Os critérios são: capacidade de
agendar e responder apropriadamente a um estímulo, relação íntima e/ou
justificável entre termo antecedente e termo subsequente, firme relação entre
causa e efeito, contiguidade e semelhança, associação coerente e justificável
de ideias e capacidade de interpretação lógica, literal e via bom-senso.
O problema se dá na constituição
da proposta do tópico. Em sua descrição existem elementos contraditórios em
relação ao exercício da filosofia clínica. Ao afirmar a impossibilidade em
trabalhar com pessoas com raciocínio desestruturado, pressupõe-se um arcabouço
sobre a forma prévia de raciocinar que antecipa a partilha.
Nessa proposta, a orientação
sobre a boa estruturação não é explicada a partir da historicidade, mas de
perspectivas próximas a uma lógica formal, consensual ou universalizante. As
descrições seguintes demandam processos fora dos contextos singulares.
A contribuição da filosofia
clínica ao mundo das terapias se dá através de um método que permite uma
aproximação à singularidade onde os caminhos de compreensão e de cuidado são
conhecidos a partir dos relatos do partilhante. Essa proposta impede a criação
e constituição de quaisquer noções a priori, isto é, antes da sessão de
terapia.
Os limites apresentados sobre os
atendimentos de pessoas com raciocínio desestruturado apontados no início da
filosofia clínica são inconsistentes quando aplicados na prática, com o rigor
do método, através do processo de reconhecimento da singularidade. Pois, o
terapeuta precisa exercitar uma postura específica e orientado por ela conduzir
os estudos, no intuito de beneficiar quem procura por seus cuidados.
Contextualizando o indivíduo a partir dele mesmo.
Para isso, o filósofo clínico
deve trabalhar com o que aparece nos encontros, não há nada para além, ou por
trás, dos aparecimentos (fenomenologia). O discurso deve ser compreendido na
literalidade, através de critérios próprios gradativamente evidenciados em
partilha (hermenêutica compreensiva). Essas duas últimas ideias não permitem a
interpretação sobre o conteúdo apresentado, mas possibilitam a compreensão por
meio do sentido dado às palavras usadas (analítica da linguagem). Viabilizam a
aproximação aos componentes da singularidade e promovem entendimento de como as
partes se ligam umas às outras (estruturalismo).
Seguir as determinações
metodológicas implica em não criar noções a priori ao atendimento. Acarreta a
obrigação de aprender sobre o partilhante a partir de seu contexto
(circunstância / historicidade). Exige do terapeuta uma sensibilidade para
visitar o mundo do outro e, a partir do conteúdo colhido, compreender como é a
relação dele consigo, como se coloca ao lidar com pessoas, com as coisas,
instituições etc. (representação de mundo).
Todo conteúdo descrito acima
constitui os alicerces do processo terapêutico. São exercícios básicos em
relação ao ofício. Atributos indispensáveis mediante a necessidade do
reconhecimento do indivíduo em um ambiente específico. Se a ideia é trabalhar
com a singularidade, essas etapas propiciam a aproximação independente de
quaisquer “características”. Sejam elas sociais, médicas ou econômicas.
A ideia questionada neste texto é
reconhecer a “desestruturação” descontextualizada dos critérios de
singularidade. Para tal é preciso cunhar uma ideia que antevê o indivíduo ao
invés de compreendê-lo e a partir de então constituir um conhecimento sobre o
singular. Mesmo depois da etapa de montagem dos conjuntos traçados entre,
tópicos e submodos, pensar a desestruturação como uma comparação com o conteúdo
colhido nas partilhas pode acarretar uma contradição. Uma tipologia.
Segundo os desdobramentos
práticos da hermenêutica compreensiva, para o filósofo clínico não objetificar,
manipular ou descontextualizar o discurso escutado, é necessário que o
descreva. Isso implica na capacidade de expor o conteúdo apresentado em sua literalidade,
de maneira integral. Desenvolver a mesma aparição de eventos apresentados em
partilha sem alterar o sentido e significado atribuídos pelo falante.
Gradativamente, as partes estruturantes aparecem e apresentam as formas como se
relacionam. A oportunidade de conhecer e relacionar essas partes estão no dado
padrão da singularidade.
Apontar uma desestruturação a
partir do conteúdo acumulado acerca da pessoa implica em uma definição de quem
ela é ou de como está. É necessário, através do dado padrão, descrever os
elementos compreendidos em clínica e evidenciar o(s) dados(s) atualizados(s) à
medida em que surgem.
Por exemplo, um partilhante
costuma efetivar sua estrutura de pensamento através de submodos como inversão,
epistemologia ou axiologia. Se em um determinado contexto usa a esteticidade
bruta, não se pode apontar uma desestruturação, enquanto tópico, em relação a
sua forma de “raciocínio” habitual. Mas deve-se descrever o dado atualizado em
relação ao dado padrão e contextualizá-lo. O filósofo clínico deve buscar
compreender como as relações estruturais atuam na singularidade ao invés de
sintetizar ou definir como desestruturação.
Paulo Alves Filho
Filósofo clínico formado pela
Casa da Filosofia Clínica
**Texto originalmente publicado
na edição primavera/2025 da revista
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