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A virtude como sustentabilidade: o olhar estoico sobre o mundo natural*

 

A filosofia dos estóicos gregos da primeira fase nos recorda que, a natureza se expressa no homem como racionalidade. Seguir o intelecto, portanto, é agir corretamente e em consonância com o todo. A “physis” não é apenas cenário, mas origem da ética: é dela que parte a reflexão sobre como deve ser o agir humano.

Para os filósofos já referidos, o escopo da vida é a felicidade, e esta se alcança vivendo “segundo a natureza”. Viver segundo a natureza significa conciliar-se com o próprio ser racional, conservando-o e atualizando-o plenamente. A virtude, nesse horizonte, não é uma abstração, mas uma prática cotidiana de harmonia com o cosmos.

No entanto, ao olharmos para o presente, percebemos um contraste. A ciência moderna, em grande parte, tornou-se interventiva, orientada por um modelo de produção cumulativo. Essa postura rompe com a harmonia que a cosmologia estoica evocava, substituindo o diálogo com a natureza por uma tentativa de dominá-la.

Vivemos na atualidade sob o peso de uma crise ambiental que não pode mais ser ignorada. Escassez de água potável, aquecimento global, perda da biodiversidade, desmatamento, poluição, queimadas e desertificação são apenas alguns sinais de que o equilíbrio ecológico está ameaçado. O protagonista dessa crise é o próprio homem, aquele que, paradoxalmente, deveria viver em conformidade com a natureza.

Diante desse contexto, a questão ética se amplia. Não se trata apenas de preservar o meio ambiente como um recurso externo, mas de reconhecer que nós e a Terra somos parte de um mesmo tecido cósmico. Somos, ao mesmo tempo, frágeis como um grão de areia e poderosos o bastante para alterar o equilíbrio que sustenta a vida.

Essa responsabilidade não recai sobre um indivíduo isolado ou uma comunidade específica. O desequilíbrio atual é fruto da atuação coletiva, direta ou indireta, ativa ou passiva. Estamos todos implicados, na ponta dos responsáveis e na ponta das vítimas.

Assim, a reflexão estoica ganha nova atualidade: viver segundo a natureza não é apenas um ideal filosófico antigo, mas um chamado ético urgente. É um convite a repensar nossa relação com o mundo e entre nós mesmos, reconhecendo que a virtude não pode ser dissociada da responsabilidade ecológica.

Se para os estóicos a felicidade nasce da vida em conformidade com a natureza, cabe a nós perguntar que tipo de felicidade podemos esperar quando a própria natureza é ameaçada por nossas mãos. Essa interrogação, longe de ser um ponto final, é um ponto de partida. Ela nos convida a refletir sobre o modo como nossas escolhas individuais e coletivas se entrelaçam com o destino do planeta.

A ética, nesse sentido, deixa de ser apenas uma disciplina filosófica e se torna prática cotidiana. O consumo consciente, o respeito aos ciclos naturais, a valorização da simplicidade e da medida, todos esses gestos podem ser compreendidos como expressões modernas da virtude estoica. Não se trata de nostalgia de um passado idealizado, mas de reconhecer que a sabedoria antiga ainda pode iluminar os dilemas contemporâneos.

O estoicismo nos ensina que não controlamos tudo, mas controlamos nossas ações e nossas disposições. Não podemos deter sozinhos o aquecimento global ou a perda da biodiversidade, mas podemos escolher como viver, como consumir, como nos relacionar com o mundo. Essa escolha, embora pequena, é também grandiosa, pois se soma às escolhas de outros e compõe o tecido da realidade.

Quem sabe seja essa a “hiperbólica ética” que se impõe: uma ética que não se limita ao indivíduo, mas que se expande ao coletivo, ao planeta, ao cosmos. Uma ética que reconhece que o destino humano está intrinsecamente ligado ao destino da Terra.

E se a filosofia é, como dizia Marco Aurélio, “um exercício de preparação para a vida”, então pensar o meio ambiente à luz do estoicismo é também preparar-nos para uma vida mais consciente, mais justa e mais harmoniosa.

Assim como o rio que corre sem se deter, a natureza nos lembra que tudo flui. Somos parte desse fluxo, não seus senhores. A virtude, quando vivida em consonância com o mundo, é como uma árvore que cresce silenciosa: suas raízes mergulham na terra, seus galhos se abrem ao céu, e sua sombra acolhe o que dela se aproxima. Talvez seja nesse gesto simples, crescer em harmonia que resida a verdadeira sustentabilidade. 

*Valter da Silveira Machado

Filósofo Clínico – Tecnólogo Ambiental

Juiz de Fora/MG

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