TRÊS LIVROS
Há algum tempo, um velho
amigo de música (olá, Vagner Vieira!) me perguntou quais seriam os três livros
mais importantes da minha vida.
* * *
Três livros. Os três
livros mais importantes da minha vida. Que pedido difícil! Imagine ter que
escolher as três músicas mais importantes da sua vida. Os três discos. As três
viagens, as três paisagens.
Nós sabemos: é impossível
fazer essa escolha. Há muitas músicas, muitas viagens, muitas paisagens que
estão entre os mais importantes. Pelo menos para mim, há muitos livros também.
Nos dias seguintes ao pedido, refiz a lista tantas vezes que perdi a conta.
Decidi que precisava estabelecer um critério: em primeiro lugar, definir o que
significava “mais importantes”. Seriam os livros que mais me transformaram? Os
que mais me abriram horizontes? Os que me trouxeram mais conhecimento? Os mais
memoráveis? Os que mais releio? Os que mais prazer me dão? Sim, porque para
cada uma dessas perguntas eu teria respostas diferentes. E que livros entrariam
na seleção? Poesia, romance, metafísica, ética, política?
* * *
Até o último momento
estava decidido a apresentar três livros do gênero que considero (e nesse juízo
estou com Aristóteles) o mais universal: a poesia. Eu havia seguido o critério
de revisitação: quem, entre todos os poetas, mais eu revisito? Posso até
entregar o ouro: eu havia selecionado as obras completas da Cecília Meireles
(que poetisa, deuses, que poetisa! Leio Cecília quase diariamente) e do Pessoa
(tudo o que ele escreve, escreve diretamente para mim) e um livro do Bukowski
(esse velho genial, que me lembra que é preciso viver e escrever como um ser
humano – imperfeito, feio, errado, sem destino, e tudo bem).
Mas no último instante
decidi mudar o meu critério: fui para os livros que mais contribuíram para a
minha construção. Eles me ajudaram a recriar cada fibra do meu corpo, cada
percepção que tenho e cada movimento que faço. Nesse sentido, os três livros
que acabei escolhendo cumprem um papel diferente daquele dos que falei acima.
Com a Cecília, com o Pessoa e com o Bukowski, tenho amigos. Eu compreendo o que
eles dizem, eles compreendem o que eu digo. Conversamos animadamente, falamos
sobre as nossas coisas, concordamos, discordamos, rimos juntos. Mas eles não
são mestres: são companheiros de jornada, são aquelas pessoas com quem queremos
falar juntos na hora de falar, com quem queremos calar juntos na hora de calar,
com quem queremos estar.
(Aqui cabe um parêntesis.
Eu vou revelar um mistério. Os livros não são objetos comuns: eles são objetos
mágicos. Eles permitem que conversemos, que discutamos e que convivamos com
pessoas de séculos atrás. Um livro invoca o autor: ele vem conversar conosco –
diretamente, pessoalmente. Uma biblioteca é um santuário, é um lugar sagrado. O
ritual da leitura cria distorções no espaço-tempo e abre portais para outros
tempos e para outras dimensões. Isso é sério. É preciso ter essa consciência: a
leitura de um livro não deveria ser vista como mero passatempo, mero
entretenimento: ler, bem lido, um livro é ter uma experiência profunda, uma
experiência mágica, do Outro).
Como eu dizia, Cecília,
Pessoa e Bukowski não são mestres, mas amigos. E decidi selecionar, para esta
brincadeira, três verdadeiros mestres, três professores que tenho para a minha
vida.
* * *
Platão. "A
República".
O primeiro livro que
quero citar é “A República” de Platão. Na verdade, fiquei com receio de parecer
clichê: “A República” é um dos livros fundadores da nossa civilização. Ele não
é importante só para mim, mas para todos nós. Aparentemente nem seria preciso
justificar a sua escolha – mas, de fato, a obviedade dessa escolha me lança uma
responsabilidade ainda maior pela sua justificação.
Em primeiro lugar,
Platão, em “A República”, reúne (ao mesmo tempo em que inaugura) todos os
campos da discussão filosófica a respeito do lugar do homem no Cosmos e do
sentido da sua existência. Ou seja: ela coloca os pontos de partida e os
limites conceituais na minha investigação pessoal sobre o meu lugar no mundo e
sobre o sentido da minha existência.
Em segundo lugar, “A República”
é um livro cujo tema central é não somente a justiça, como é mais evidente, mas
também a educação, e eu sou um educador. Escolhi a profissão de professor. Por
isso nesse sentido “A República” também fala diretamente para mim.
Em terceiro lugar, o
livro é aberto como a vida é aberta: a despeito do que possa parecer, Platão
nada tem de dogmático. Pelo contrário: ele é crítico, demolidor, irônico – e
divertido. Muito divertido.
Um dos aspectos mais
divertidos de “A República” está no fato de que a obra, que inaugura o gênero
literário das “utopias”, guarda um “easter egg”: a República de que Platão fala
em praticamente todo livro não é exatamente o Estado ideal de Platão, mas um
Estado constituído a partir de bases que ele considera doentes. De fato, no
Livro II Platão descreve o seu Estado ideal: é um Estado pequeno, agrário, sem
riqueza, no qual ninguém teria nenhum luxo, ninguém se alimentaria de
guloseimas, ninguém teria mesas e camas, perfumes e roupas luxuosas. Mas
Gláucon, seu interlocutor, diz que esse Estado seria indesejável: por que não
poderíamos ter luxo?
Então Platão diz algo
como: “ah, então você quer um Estado grande, com dinheiro, que possa garantir o
luxo para os cidadãos? Você quer a descrição do mais justo Estado doente? Então
lá vai”. E segue-se a descrição de “A República” que conhecemos. Isto é: “A
República” que está nos manuais escolares não é a República ideal de Platão,
como se diz, mas uma República doente na qual se visa a obter um mínimo de
justiça.
Uma obra que ordena as
nossas estruturas interiores e exteriores, que ensina a pensar, e que sobretudo
nos exige a manutenção constante de um grau de ceticismo e de ironia na vida
social: “A República” é o livro mais importante que já li.
* * *
Sartre. "O Ser e o
Nada".
Novamente, um livro que
me impactou – e que impactou o mundo. "O Ser e o Nada" alimentou o
incêndio da política e dos costumes nos últimos 80 anos, e direcionou a minha
sede de liberdade.
Dizer que esse livro é
uma das grandes obras de filosofia do século XX é lugar-comum. É um livro
grande, denso, pesado – não só intelectualmente, mas também fisicamente.
Contudo, é ao mesmo tempo um livro leve, com uma tese clara e renovadora.
A tese do livro pode ser
resumida em uma expressão: o ser humano é absolutamente livre. Não importam as
circunstâncias, não importa a sociedade, não importa a injustiça, a guerra, a
doença, a prisão: o ser humano continua sendo absolutamente livre – livre para
criar, livre para lutar, livre inclusive para se submeter e se anular.
A liberdade é radical:
não se pode escapar dela. Essa idéia, que é profundamente libertadora, é também
difícil. Afinal, se a liberdade é constitutiva do ser humano, se a liberdade é
inevitável, então é impossível escapar da responsabilidade para com tudo na
própria vida. Cada homem e cada mulher é completamente responsável por toda a
sua história.
Nesse sentido, a proposta
de Sartre pode ser dolorosa: eu não posso atribuir nenhuma responsabilidade por
nada na minha história a mais ninguém. O problema, para Sartre, não é saber o
que fizeram comigo: é saber o que eu vou fazer com o que fizeram comigo.
Somos jogados, sem que
possamos escolher, num mundo a nós indiferente. Não há nenhum caminho
pré-definido, não há certo ou errado, não há bem ou mal: tudo isso faz parte do
campo da nossa liberdade, em que podemos escolher o que nos oferecem, ou
podemos escolher algo completamente diferente, ou podemos ainda não escolher
nada, o que é também uma escolha.
Em suma: não há respostas
para as perguntas da vida. Sartre nos mostra que a única certeza que podemos
ter é a de que não há certeza senão a da inevitabilidade da liberdade. É por
isso que “O Ser e o Nada” é o livro mais revolucionário que já li.
* * *
Bachelard. "A
Poética do Devaneio".
Admito: fiquei entre o
"Assim Falou Zaratustra", do Nietzsche, e este pequeno livro do
Bachelard. Nietzsche não foi um professor de fato, mas um anti-professor: ele
não me ensinou nada senão a questionar tudo, a desobedecer sempre, a – como dizia
Belchior numa canção forte e cheia de verdade – nunca fazer nada que o mestre
mandar. Enfim: Nietzsche me ensinou a ter a coragem para dizer não; e por isso
também me ensinou a ter a coragem para dizer sim.
Contudo, pensando bem,
Bachelard me ensinou muito mais: ele me mostrou a riqueza que habita em cada
cantinho da nossa capacidade de sonhar acordado, de imaginar, de poetizar.
Bachelard me ensinou que a imagem poética é o núcleo da própria existência
humana, e que tudo o que o ser humano constrói – da ciência à política à arte –
está baseado em imagens poéticas primordiais e atemporais.
Com Bachelard aprendi que
a imagem poética não tem uma história: ela de repente emerge, surge não sei de
onde e vai para não sei que lugar, autonomamente. E que a poesia, ativando as
potências da linguagem, pode suscitar justamente essas imagens poéticas
ancestrais, pode nos colocar em contato com a nossa própria história pessoal e
humana.
Bachelard nos mostra que
todos os nossos lugares, todas as nossas ações, todos os nossos repousos, todos
os nossos alimentos, todos os nossos hábitos, os nossos modos de viver, todas
as nossas palavras – em suma, tudo o que constitui aquilo que chamamos de “eu”
– têm uma natureza simbólica; eles se distribuem em campos simbólicos dos quais
extraímos os significados a partir dos quais vivemos no dia-a-dia.
É por isso que Bachelard
insiste na necessidade da leitura dos poetas. Ele nos exige que estejamos
conscientes da nossa vida diurna (a vida do trabalho, da ciência, da
objetividade) e da nossa vida noturna (a vida da poesia, da imaginação, da
subjetividade), porque somente o homem que vive as vinte e quatro horas vive
toda a sua humanidade. A poesia e a ciência, a imaginação e o conhecimento
objetivo, não são contraditórios, mas complementares.
Portanto, o problema da
separação entre a imaginação e a vida do dia-a-dia é um falso problema: o
desafio é viver na poesia e na objetividade, na arte e no trabalho técnico, no
cosmos e no universo, sem que se perca nada de um lado e de outro. O sonhador do
mundo é simplesmente o outro lado do trabalhador do mundo.
Quando compreendi isso,
entendi a necessidade de reunir o mundo objetivo e o mundo poético para que
floresça em mim a humanidade integral. É por essa razão que “A Poética do
Devaneio” é o livro mais transformador que já li.
* * *
Então são esses os três
livros. Evidentemente não posso nem dizer que essa escolha tenha sido difícil –
pois essa escolha é impossível. Há tantos outros livros que poderiam ter
entrado nessa seleção! No fim, ela retrata, como não pode deixar de ser, o
movimento existencial que realizo neste momento, as minhas preocupações, a
direção para onde aponto o meu olhar, e os meus mestres literários atualmente
mais presentes na grande viagem deste mundo.
*Prof. Dr. Gustavo
Bertoche
Filósofo. Escritor.
Musicista. Professor. Filósofo Clínico. Em 2019, por decisão do Conselho da
Casa da Filosofia Clínica, lhe foi outorgado o título de Doutor Honoris
Causa.
Teresópolis/RJ
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