A novidade da filosofia clínica é
a afirmação da singularidade. Cada partilhante é critério de si, a partir de
sua historicidade, fornecendo parâmetros à realização dos procedimentos
clínicos ao terapeuta. Mas, alguns desdobramentos dessa abordagem terapêutica
são questionáveis. Refiro-me a questões relativas à matemática simbólica.
Para refletirmos, uso a filosofia
clínica como o método para melhor explicá-la, corrigi-la e desenvolvê-la. As
linhas seguintes demandam concisão. Considero a filosofia clínica capaz de
compreender formulações complexas ao analisar suas composições estruturais.
No início da “Filosofia Clínica:
propedêutica”, Lúcio Packter destinou as primeiras linhas para explicar o
contexto histórico que permeou sua vida no período no qual iniciava suas
pesquisas para a sistematização daquilo que mais tarde receberia o nome de
filosofia clínica. A categoria circunstância descrita pelo autor nos ajuda a
suspeitar que como o mundo parece é um tópico determinante em sua estrutura de
pensamento.
A poética presente em como Lúcio
fala da filosofia clínica mostra o quanto o vice-conceito permeia seu modo de
ser. Trata-se, possivelmente, da manifestação da sensibilidade que o tornou
aberto às demandas existenciais dos partilhantes. Sua formação musical, as
leituras filosóficas e literárias e as experiências de vida desde a infância
cunharam um gênio cuja contribuição foi uma nova forma de terapia.
Durante as pesquisas, Packter
estabelece diálogos entre os atendimentos e as leituras sobretudo das obras dos
filósofos. Ele relata ter de abrir mão de teorias por não servirem à prática.
Suas preferências teóricas são suspensas em prol da escuta do partilhante. Eis
um critério fundamental para pensarmos a filosofia clínica e as investigações
de aprofundamento: servir ao consultório suspendendo até nossas preferências.
Quando Lúcio iniciou suas
investigações, havia passado pela formação em medicina. A graduação em
filosofia ocorreu quando resolveu divulgar o resultado de suas pesquisas, isto
é, quando a filosofia clínica estava sistematizada. Sua peculiar visão e
leitura da filosofia é feita como uma metafilosofia, ou seja, ele a lê como
filósofo clínico desde o início de suas pesquisas. Por isso, nos anos 1990,
quando escreveu que poderia haver pareceres distintos no consultório por
filósofos clínicos com preferências por determinadas escolas de pensamento, sua
referência são leituras de filosofia a seu modo e não como realizadas na
academia. Além disso, provavelmente não percebia a consistência e autonomia da
filosofia clínica.
Em outras palavras, a filosofia
clínica é, por si, um sistema. Não se encontra a filosofia clínica nos autores
lidos por Lúcio. A leitura desses pensadores foi feita por um filósofo clínico
desde antes da sistematização. Por isso, alguns continuadores do projeto de
Packter, ao tentar contribuir para a reflexão sobre a clínica filosófica,
desdobram teorias inférteis. Eles leem segundo os critérios acadêmicos e não
segundo a necessidade da prática.
A matemática simbólica surge como
promessa, um estudo posterior (avançado?) à apresentação das três bases da
filosofia clínica: exames categoriais, estrutura de pensamento e submodos. Logo
vieram as autogenias verticais, horizontais, transversais, as sinonímias, as
pós-autogenias e outros apelos simbólicos. No primeiro momento, os padrões
autogênicos apontam para uma dimensão abrangente do partilhante. Porém, ainda
pode ser considerada abarcando as três bases. Deste modo, continua a ser uma
perspectiva compreendida a partir do partilhante. Este permanece sendo o
critério do trabalho terapêutico.
Aos poucos, outro termo equívoco
surge: “bases categoriais”. Os exames categoriais, antes preenchidos segundo o
relato do partilhante, começa a ser exposto e refletido (a priori) pelo
filósofo clínico. Então, a escuta mescla com como o mundo parece. Pois, se cada
pessoa tem uma representação de mundo, quando o filósofo diz qual é a base
categorial de seu partilhante, e mais, de sua época, o tópico do terapeuta
torna-se o critério.
Junto às bases categoriais, são apresentados
elementos como as autogenias horizontais e as verticais. Se consideramos tais
autogenias respectivamente (1) segundo critérios de modificações dentro de um
mesmo padrão autogênico e (2) enquanto modificação nas categorias, na estrutura
de pensamento ou até dos submodos, conforme apresentei em meu livro, estaríamos
respeitando a proposta revolucionária dos anos 1990. Mas, entraram critérios
como as densidades.
Com isso, as características de
época – bases categoriais – situam quais as densidades comuns em nossa (segundo
quem?) época, em períodos anteriores, em novas épocas e, nesse contexto, quais
são as pessoas mais mecânicas ou mais e menos densas, em quais patamares
existenciais se encontram etc. Sócrates, Jesus e Buda, por exemplo, tornam-se “modelos”
de menor densidade, mais etéreos, menos lógicos racionais, mais intuitivos e
conceituais. Se a intenção com tais nomenclaturas não é a de construir
parâmetros externos – as tipologias –, os vice-conceitos com seus termos
equívocos passaram essas ideias para inúmeros filósofos clínicos.
A filosofia clínica é maior do que Packter suspeitou. Sua constituição pode denunciar as contradições e as inconsistências teóricas e práticas de seus filósofos – sem exceção. A matemática simbólica pode contribuir ao manter-se parte do método, resguardando o caráter emancipatório do princípio da singularidade.
*Prof. Dr. Miguel Angelo Caruzo.
Filósofo. Escritor. Professor. Mestre e Doutor em Filosofia pela UFJF-Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Autor da obra: "Introdução à Filosofia Clínica". Ed. Vozes/RJ. 2021. Agraciado com o título de "Doutor Honoris Causa" pelo conselho da Casa da Filosofia Clínica em 2019.
**Texto publicado originalmente na edição Verão da Revista da Casa da Filosofia Clínica.
Bibliografia
CARUZO, Miguel Angelo. Introdução
à filosofia clínica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.
FERNANDES, Cláudio et. all.
(Org). Filosofia Clínica: Tópicos. São Paulo: Ed. Própria, 2021.
GOYA, Will. A escuta e o
silêncio: lições do diálogo na filosofia clínica. Listening and silence:
lessons from dialog in clinical philosophy. trad. Clare Charity; revisão
Fernanda Moura e Thais Campos. 2ª edição revista e ampliada. Goiânia: Ed. da
PUC Goiás, 2010.
PACKTER, Lúcio. Caderno A. Porto
Alegre: Instituto Packter, s.d.
PACKTER, Lúcio. Filosofia
Clínica: propedêutica. Porto Alegre: AGE, 1997.
STRASSBURGER, Hélio. Filosofia
clínica: anotações e reflexões de um consultório. Porto Alegre: Sulina, 2021.
Comentários
Postar um comentário