Na mitologia poética de
Fernando Pessoa, o que caracteriza o discípulo _ me lembra George Steiner em um
memorável ensaio, "Chuva de fogo" _ é "a capacidade de ser
hipnotizado". Na linhagem de seus célebres heterônimos, tanto Ricardo Reis
como Alvaro de Campos se definem como discípulos de Alberto Caeiro. Ao ouvir a
primeira lição de Caeiro, lembra Steiner, Campos experimentou "um choque
sísmico". A sentença proferida pelo mestre é, de fato, perturbadora:
"Tudo difere de nós e é por isso que existe".
Quando conversava com
Caeiro, lembra ainda Steiner, Alvaro de Campos tinha a sensação física de
"estar a discutir não com um outro homem, mas com um outro universo".
O paganismo de Caeiro, sua maneira direta e sem filtros de observar o mundo, é,
sim, muito particular. Mas, em vez de fugir, Campos _ relatava Pessoa _ dele se
aproximava mais ainda. A partir do contato com Alberto Caeiro, o discípulo
chegou a uma conclusão difícil e um tanto repulsiva: "Pessoas inferiores
não podem ter um mestre, posto que não têm o que é necessário para terem um
mestre". E o que é necessário para ter um mestre? Justamente estar
disponível para a experiência da hipnose, para o tal "choque sísmico"
que revira o mundo de ponta cabeça e nos leva a ver o que, antes, parecia
inexistente. E para isso, o nobre Campos me perdoe, não é preciso ter status
social.
Foi o que senti quando, em 1969, preparando
para as provas do exame vestibular, tive uma conversa decisiva com José
Rodrigues, meu professor de literatura francesa no Colégio Santo Inácio _ hoje
um diplomata em alguma parte do planeta. Desde menino, queria me tornar
escritor. Minha ideia inicial era tornar-me poeta. A leitura de Bandeira,
Vinicius e Cabral, em particular, feita ainda de calças curtas, me abalara de
tal modo que eu não podia imaginar outro caminho a seguir.
Meu pai me advertia:
"Pare de sonhar e faça engenharia" Sim: mesmo tendo desistido depois
da poesia, eles foram, continuaram a ser, e ainda hoje são _ mesmo ausentes _
meus mestres. Com Bandeira aprendi o amor lírico pelas coisas simples. Com
Vinicius, o primado absoluto da paixão, elemento sem o qual nada se faz que
realmente preste. Com Cabral, o papel decisivo do corte. Disse-me ele, muito
mais tarde, que cortar é ainda mais importante que escrever. Mais ainda: que
cortar é a verdadeira maneira de escrever. Você não pode ter piedade da
palavra, nem se deixar enganar por sua falsa beleza, me aconselhou. Deve ser
rígido, ser firme, ser intolerante, e cortar, cortar, cortar, até que o osso (a
pedra) da palavra apareça à sua frente.
Mas retorno a meu
diálogo decisivo com José Rodrigues, meu professor de literatura. Eu queria me
tornar escritor _ e por isso me preparava para o vestibular de Letras.
Parecia-me o caminho natural. Rodrigues foi duro comigo (e recordo que era um
brilhante professor de literatura francesa): "Se você quer ser escritor,
faça tudo, menos Letras. Fazendo, sua mente será tomada por teorias, teses,
gêneros, classificações, experimentações intelectuais. Tudo aquilo de que um
poeta não precisa. Tudo aquilo que barra o caminho da poesia"; Sua
apreciação, a princípio, me assustou. Ela arrancava de minhas mãos o fio em que
eu me apoiava rumo à escrita.
Cambaleei, o chão me
fugiu, e ainda tonto perguntei: "Mas, então, o que devo fazer?"
Rodrigues parou um pouco para pensar. Ruminou algumas palavras que não chegou a
concluir e depois, num ímpeto, me disse: "Faça jornalismo!"
Jornalismo? Meu pai, José Ribamar, foi jornalista profissional. Durante muitos
anos foi o setorista de O GLOBO no Senado Federal, quando o Rio de Janeiro
ainda era a capital da República. Talvez "contra o pai", em busca de
minha afirmação individual, jamais pensara em me tornar jornalista. E agora um
professor de literatura me dizia que, para me tornar escritor, tinha que
estudar Jornalismo, e não Letras?
Ali, naquele segundo
semestre de 1969, depois de frequentar durante dois anos e meio as aulas de
José Rodrigues, tornei-me, enfim, seu discípulo. Ele me hipnotizara. Sempre
acreditei que houve, nisso, um pouco de fraqueza de minha parte; que todo
hipnotizado se torna, um pouco, um objeto. Agora, quase meio século depois,
releio as palavras de George Steiner em seu ensaio sobre Pessoa: "A
capacidade de ser hipnotizado distingue as personalidades fortes. Estas retêm
sua individualidade transmutada após terem passado pela intervenção do
mestre".
Mas então eu fui forte,
e não fraco! Os argumentos de José Rodrigues eram dois e eram simples.
Primeiro: o jornalismo me obrigaria a escrever diariamente, não permitiria
jamais que eu me afastasse das palavras. Segundo e, de acordo com Rodrigues, a
mais importante: o jornalismo nos empurra drasticamente para a realidade, nos
lança sobre ela sem nenhuma delicadeza ou mesura, e esse choque direto com o
real, que nos contamina quase que como a um veneno, é indispensável para a
formação do escritor. Pelo menos para aqueles que não querem ser apenas
escritores "de gabinete".
Não me arrependo de ter
seguido as instruções de meu mestre. Muito ao contrário, hoje me orgulho de ser
jornalista também. Não cheguei a ser poeta. Faço uma literatura oscilante, que
estremece entre os gêneros e os estilos. Sei que, como escritor, tenho uma
identidade fluida, que alguns talvez vejam como insuficiente. Nada disso me perturba,
eu sigo meu caminho. E a ele cheguei, a verdade é essa, graças ao jornalismo.
Poderia aqui repetir as palavras de Alvaro de Campos a respeito de seu encontro
com o mestre Caeiro: "E, a partir de então, para melhor ou para pior, eu
tenho sido eu".
*José Castello
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