“Então
me senti como um observador dos céus. Quando um novo planeta desliza para o seu
campo de vista; ou como o resoluto Cortês, quando com olhos de águia contemplou
o Pacífico, e todos os seus homens entreolharam-se com um alucinado presságio
(...)”
John Keats
O exercício clínico do
Filósofo acontece em contextos de imprecisão e descoberta. Inexistem fórmulas
prontas, verdades, aconselhamentos, receitas, testes ou orientações
predeterminadas. As dinâmicas de acolhimento e atenção com a vida desdobram-se
no mundo como representação da pessoa. Um processo inicial de abertura anuncia
a terapia. Ponto de encontro aos desdobramentos do papel existencial cuidador.
A fundamentação teórica
é consequência aproximada de 2.500 anos de Filosofia. A fundamentação prática
descortina-se nos eventos de consultório. Propor uma leitura direta dos
clássicos e tentar encontrar ali Filosofia Clínica pode ser tarefa árdua. Esse
trabalho foi feito por outro médico-pensador: Lúcio Packter, tomando àqueles
como fonte de inspiração ao novo paradigma.
Sua trajetória
existencial: ideias, pensamentos, estudos e pesquisas constituem um
pré-requisito para saber mais sobre o tema. Seu aparato metodológico situa-se
na pós-modernidade da história das terapias.
Talvez a questão de
maior destaque sobre a natureza dos atendimentos diga respeito ao que faz de um
terapeuta um bom terapeuta. Chama atenção um ingrediente, considerado como
defeito por outras abordagens: as carências e fragilidades do clínico. No
referencial metodológico da Filosofia Clínica, esse componente pode ser aliado
imprescindível ao ser cuidador!
No exercício do papel
existencial. Esse aspecto, quando bem elaborado, vincula-se poderosamente a uma
excepcional manifestação de humanidade. Aptidão que anuncia a natureza das
interseções e costuma acompanhar a pessoa bem depois da alta compartilhada.
Pode significar força e dedicação incomuns à pluralidade do fenômeno humano.
Algo mais se oferece em
nomenclaturas desse papel existencial: acessar intencionalidades entremeios de
narrativa, reconhecer o endereço, a forma e o tempo próprio pelo qual as
problemáticas se estruturam e identificar venenos e antídotos na generosa
farmácia das subjetividades integram a magia do ser Filósofo Clínico.
Na expressividade do
consultório, é possível descobrir nomes, versões e signos aptos à tradução
compartilhada desses inéditos. Descortina-se em território próprio ao revisitar
o velho álbum das suas recordações.
As considerações
narrativas atualizam imagens que pareciam perdidas no tempo. Os refúgios
entremeios da linguagem podem desvendar a farmácia onde os remédios se
encontram. Há de se reescrever mapas e reconhecer divisas, tratados e limites
territoriais da estrutura de pensamento.
A terapia como
inspiração, acolhe, tenta qualificar interseção e busca entender os tropeços
iniciais, para antever escutas e vislumbrar sons de raridade inadequados às
palavras. Em cada pessoa, uma obra aberta persegue-se na impermanência das
crises. Dialetos de aparência estrangeira denunciam a realidade contaminada
pela fugaz poesia dos delírios.
Os roteiros e significados
possuem uma forma peculiar de se dizer. Conversação entrevista na interseção do
sujeito com seu cotidiano. Ser Filósofo Clínico é compartilhar silêncios e
ressonâncias, sem descuidar das perspectivas do outro. A plasticidade e um
planejamento dinâmico (que pode incluir um não planejamento) referem-se aos
instantes em que o terapeuta tenha de refazer, objetivamente, aquilo para o
qual estava preparado.
Quando o estudante
consegue integrar, de maneira eficaz, sua historicidade e vivências aos
estudos, a formação poderá ter um alcance maior. Transitar e dialogar com a
estrutura das surpresas, fazer e refazer percursos, acrescentar percepções e
não desmerecer intuições, bem assim investigar sua própria estrutura enquanto
acolhe e transita por mundos alheios, constitui fatos determinantes à
preparação desse médico de almas.
Encontrar um refúgio
capaz de devolver o Filósofo Clínico ao seu eixo estrutural é imprescindível.
Acostumar-se ao espírito aprendiz, num referencial de obra aberta para acolher
o outro, suas dúvidas e contradições, no esboço descontinuado para decifrar sua
linguagem.
O gerenciamento das
atitudes de não expectativa antes, durante e depois das sessões pode conceder
eficácia à investigação preliminar, antes das intervenções mais adequadas á singularidade.
Percorrer em
reciprocidade os recantos da subjetividade Partilhante, identificando sensações
e percepções pode significar uma leitura mais apropriada para compreender suas
verdades. A investigação reflexiva na prática clínica descobre a via para além
da trama bem arrumada dos conceitos.
Nos ensaios
desconstrutivos do consultório, uma pluralidade de hipóteses, experimentações,
simulacros e outros roteiros desdobram-se na continuidade de um compartilhar.
Para bem depois das queixas iniciais, o Filósofo Clínico trabalha para
qualificar a circunstância narrativa, por onde os registros históricos se
atualizam e ganham sentido na versão muito íntima das singularidades.
Contradição com o enredo bem guardado a sugerir outras vivências, no devir imprevisível
das vontades.
A interseção entre os
integrantes dessa realidade pode inventar conexões de apoio aos ensaios de vida
nova. Sob muitos aspectos, o exercício da clínica revela-se como um poderoso
aliado aos sonhos por transformar o mundo.
Outro dia escutava um
colega dizer: ‘ser terapeuta em tempos de fartura e bonança é fácil, quero ver
quem realmente consegue utilizar o que aprendeu em tempos difíceis’. O papel
existencial cuidador aparece vinculado às caóticas e decadentes crises das
pessoas.
Um aspecto importante,
após decifrar a trama conceitual contida na fundamentação teórica e qualificar
a fundamentação prática, é buscar diálogos entre as vivências de aprendiz e o
quanto essas convivências podem melhorar o estilo do ser terapeuta. Bem assim,
não descartar as quedas e tropeços existenciais nos quais se pode encontrar dum
ponto de apoio à formação continuada.
Uma boa interseção, as
descobertas, os riscos e concepções pessoais possuem papel significativo na
estrutura dos atendimentos. O terapeuta vai se acostumando a interagir com as
adversidades, quase ao mesmo tempo de seus exercícios em território próprio.
Com maior intimidade e domínio dos procedimentos adequados à subjetividade em
atendimento, é possível descobrir o alcance da medicação.
A etapa desestruturante
para autonomia da pessoa aprecia a sedução desses imensos horizontes de
incógnita. Até o tempo ressignifica sua condição, entremeios de incertezas e
dúvidas. Na fala viva dessa incompletude, um referencial de tipo novo supera as
anteriores versões. Insinuação para além do texto bem arrumado dos compêndios.
Secretas vontades
interagem com pretextos de vida nova. Interseção em que o humano experimenta-se
na provisoriedade dos novos papéis. Assim, a clínica se faz laboratório aos
experimentos de múltiplas faces.
Talvez uma pergunta sem
resposta possa marcar o início sem fim dessas explorações compartilhadas.
Conexão com a natureza difusa das subjetividades. A recuperação da
expressividade interdita pelos diagnósticos se oferece entrelinhas nos espaços
de aparente vazio. Aprecia o disfarce de inexistência no refúgio sagrado das
abstrações.
Nessas idas e vindas
das sessões, o terapeuta oferece partes importantes de si na relação com o
outro-Partilhante. Ingrediente
imprescindível á qualificação dos atendimentos. Assim, também ele pode sentir
necessidade de refugiar-se para atualizar sua estrutura.
Estéticas da alteridade
relacionam-se com a (quase) indescritível beleza da expressividade dessa
metodologia. Ressonância dos encontros para bem depois das altas
compartilhadas. Escutas, olhares e intuições desdobram-se na inconclusão das
certezas.
No entanto, de qualquer
coisa assim, avistam-se territórios de um absurdo casual. Acolhida sem julgar
ou classificar para essas impossibilidades do contar, também ele a dizer coisas
sobre esse outro que o legitima.
*Hélio Strassburger in “Pérolas
Imperfeitas – Apontamentos sobre as lógicas do improvável” Ed.
Sulina. Porto Alegre/RS. 2012.
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