Quando, a partir da filosofia clínica, falamos sobre compreender o “mundo” do outro, tal afirmação pode soar como um termo equívoco. Trata-se do mundo enquanto representação de mundo, inspirada na noção de “homem como medida de todas as coisas”, de Protágoras de Abdera, atualizada em Arthur Schopenhauer ao afirmar que “o mundo é minha representação”. Isto é mostrado claramente nos antigos Cadernos utilizados na formação de filósofos clínicos, sobretudo na segunda metade dos anos de 1990.
Mas, a fim de contribuir para o
entendimento da noção de mundo do partilhante
a qual o filósofo clínico busca
acessar via recíproca de inversão ao
longo das sessões, podemos recorrer ao pensamento de Martin Heidegger. O
filósofo de Messkirch pautou toda sua vida a pensar a “questão do ser”. Uma
noção de “ser” que, aliás, é diferente de seus predecessores dos últimos vinte
e cinco séculos.
Para Heidegger, todos os entes são
precedidos pelo ser. Partindo de um vice-conceito
– assumindo-o como simplificação grosseira – podemos pensar em uma lanterna
iluminando o ambiente. É a luz da lanterna que ilumina e nos faz ver as coisas.
Mas, ao ver as coisas, não pensamos na iluminação que nos viabiliza acessá-las.
As coisas não são a luz, mas tanto a luz quanto as coisas iluminadas são
distintas; embora a luz só seja vista enquanto iluminando algo e esse algo só
seja acessado por ter tido essa luz viabilizando seu acesso.
Analogamente, a questão do ser, como
esse modo de acesso aos entes, foi convertida em uma metafísica que pensa os
entes enquanto entes na totalidade, mesmo que o termo ser tenha sido mencionado
por inúmeros filósofos da tradição, ele (o ser) foi, de certo modo, entificado
também. Pois, toda tentativa de predicar o ser leva-nos a confundi-lo com os
entes. Mas, em que medida isso nos ajuda a pensar o mundo na filosofia clínica.
O mundo ao qual nos referimos não é uma
disposição de coisas ou a descrição do planeta Terra. Antes é essa totalidade
de sentido no qual estamos. Ao ler esse texto na tela de seu celular, no
monitor do computador ou em uma folha impressa, tais palavras estão vinculadas
a uma totalidade prévia, antes até de nossas racionalizações a respeito. Por
exemplo: as palavras pertencem a uma noção de alfabeto, vocábulos, idioma,
cultura, país etc. A tela do celular está vinculada a um aparelho usado para
fazer ligações, enviar mensagens. O lugar onde você está, caso seja a sua casa,
está vinculado a uma noção de lar com todos os atributos próprios de uma
moradia, em um bairro de um município, de um estado do país da América Latina,
no hemisfério sul do planeta Terra.
Toda essa rede de sentidos, essa
totalidade de significado, é o mundo de cada um de nós. Partilhamos sentidos em
comum, embora as nuances próprias nos diferenciem. O mundo é compartilhado. Daí
Heidegger dizer que somos “ser-no-mundo”. Ao mesmo tempo, cada um de nós possui
um mundo que cessa quando morremos. Morrer é a possibilidade que impossibilita
as demais possibilidades de nosso poder-ser. Para o filósofo alemão, esse é o
princípio de individuação tão buscado na filosofia medieval. Mas, isso é
assunto para outro texto.
De modo bastante resumido, o mundo pode
ser compreendido como esse acesso ao conjunto de entes ao nosso redor precedido
pelo ser. O mundo é a totalidade de sentido a partir da qual nós somos. Ir ao
mundo do outro, fazer essa recíproca de
inversão, a partir de uma “suspensão de juízo” – uma epoché husserliana adaptada – nada mais é do que buscar, dentro do
possível, compreender essa totalidade de sentido na qual nossos partilhantes estão inseridos.
*Prof. Dr. Miguel Angelo Caruzo
Filósofo. Escritor. Filósofo Clínico.
Autor de “Introdução à Filosofia Clínica”. Editora Vozes. Petrópolis/RJ.
2021. Professor Titular na Casa da Filosofia Clínica.
Teresópolis/RJ
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