Cada um de nós tem um discurso próprio, uma forma de verbalizar o mundo. Às vezes compreensível, estruturado, coerente, mas tantas outras vezes nem tanto assim. Muitos apenas deixam transparecer o que lhes vai à alma; outros se descabelam de tanta expressão.
Algumas destas expressões são
múltiplas e abrangem olhares, toques, sons, paladares, cheiros e também muitos
outros sentidos que não podem sequer ser mencionados, tomando a atenção do
outro por inteiro. Inúmeras outras expressões, entretanto, se recolhem e se
manifestam somente para poucos escolhidos. Muitos mesclam momentos de
recolhimento com outros de euforia, nos lembrando que podemos ser imprevisíveis
até mesmo dentro de nossa linearidade.
Não há um discurso igual ao
outro, como não há necessariamente uma imposição de padrões nos discursos já
conhecidos, simplesmente porque estes podem mudar.
Quantas vezes, quando supomos já conhecer
nossos partilhantes e fazemos nossos próprios discursos em função desses
conhecimentos, que julgamos muito bem fundamentados, lá vêm eles com uma
novidade, deixando nossas falas pré-ajuizadas vazias e desconcertadas.
É claro que precisamos basear
toda e qualquer análise de todo e qualquer discurso que nos é relatado na
investigação de como é a estrutura de pensamento dos nossos partilhantes,
através da historicidade e dos exames categoriais; mas é importante,
fundamental, lembrar que estamos quase sempre com uma caixinha surpresa à nossa
frente.
Até o mais previsível dos
partilhantes pode nos surpreender... Assuntos mudam, tempos e lugares também;
relações então... é bom nem falar. E todas essas mudanças geram circunstâncias
que vão se modificando e se alternando. Parte do nosso trabalho é buscar algum
padrão, algo que estabilize essa estrutura que se movimenta e que é bela
exatamente por isso.
Mas essa busca não pode e não
deve nunca interferir na espontaneidade das revelações que se sucedem. E nem
sempre revelam a face de quem as emite, pois mesmo as máscaras de que nos
valemos em nosso dia a dia, em momentos que escapam ao controle, podem sugerir
interpretações equivocadas até por parte de experientes terapeutas. O que
compensa é o esforço deste em sua disposição de acolher quem o procura, pois
qualquer discurso possui potencialidade para exprimir o que vai à alma, ao
coração, ao corpo.
É importante observar que a
escolha, construção e evolução do ser terapeuta parte desses infinitos
discursos que nos chegam de formas igualmente infinitas. Somos constantemente
impulsionados a desafios, exatamente porque desconhecemos os discursos que se
apresentam.
Estruturas de pensamento se
modificam e sofrem nano autogenias no decorrer do dia, surpreendendo até mesmo
seus próprios autores e estas influências acontecem constante e
ininterruptamente, ou seja, o ser terapeuta se constrói do momento em que
acorda à hora que se deita.
Quer queiramos quer não, não
desperdiçamos uma gota de contribuição a esse estado; tudo participa para
passarmos adiante na forma de afeto e atenção, dedicação e interesse, os
cuidados pela alma que se apresenta. E ainda tem mais: este papel existencial
se estende a todos a nossa volta, pois os cuidados não se limitam ao ambiente
do consultório e à hora marcada. Arrisco-me a dizer até mesmo que somos todos,
quase sem exceção, cuidadores em potencial.
No filme “O discurso do rei”,
podemos observar um raro exemplo de uma fala que vai se qualificando conforme a
interseção, do próprio e do outro, até dar conta do que realmente tem
significado: a exposição de uma historicidade peculiar, que demandou tempo e
exigiu que a evolução da cumplicidade se cumprisse.
Nessa história, curiosamente real
(aqui com um duplo sentido), um terapeuta dedicado a tratamentos que envolviam
a fala se envolve clinicamente com ninguém mais ninguém menos do que um
príncipe da corte inglesa. A clínica neste caso se constituiu tarefa não muito
fácil, dadas as circunstâncias que a formalidade das condições exigia.
Porém, a dedicação do terapeuta e
sua determinação foram essenciais para que a qualidade da interseção e do
tratamento evoluísse, com os ajustes necessários e com o exercício, igualmente
necessário e fundamental, da paciência e da persistência.
Seu paciente de sangue azul o
brindou com sucessivas manifestações de esteticidade bruta, seguidos de
intensos momentos emocionais e um extenso pacote de pré-juízos. Mas essa não é
obviamente uma prerrogativa real, pois o príncipe, como qualquer um de nós,
carecia simplesmente de atenção autêntica para dar conta do (inevitável)
encontro com suas dúvidas, dores, alegrias, perdas, aceitações e tantos outros
aspectos que o levariam ao cerne do seu suposto assunto imediato.
Enfim, gente como a gente... que
erra, se equivoca, provoca, mistura e entorna. Um exemplo de discursos que se
modificam conforme circunstâncias, que podem transmitir o que na realidade são
apenas facetas de uma realidade muito mais complexa e que podem revelar tantos
seres em um só. O terapeuta seria então aquele que se curva à nobreza, ainda
que oculta, de cada alma.
A compreensão do outro e a
possível clínica, em qualquer circunstância, depende essencialmente de uma
natureza voltada ao cuidar, ao cumprimento de um papel existencial com a tranquilidade
e a competência dos que sabem para onde estão indo, para exercer fundamentalmente
o que os terapeutas devem ser: amigos das almas de seus partilhantes. Mas será
que para isso é preciso ter credenciais?
A resposta toma a complexa via da
ética, que exige uma postura que só se adquire com tempo, conhecimento,
experiência e alguma sabedoria. Credenciais na verdade são simplesmente o
recibo que passamos à formalidade; uma simples ação que autoriza uma função,
mas que informa o percurso da estrada percorrida na qual investimos também a
nossa alma.
Enfim, para um filósofo clínico
estar à altura de seus pressupostos conceituais é preciso, além de sua formação
teórica, filosófica e existencial, fundamentalmente ser amigo, praticar afetos,
reconhecimentos e humildades e saber que trocas são para ser exercidas. E
discursos, para serem revelados ou quem sabe até mesmo, puramente legados à sua
própria singularidade.
*Luana Tavares
Filósofa. Escritora. Filósofa
Clínica.
Niterói/RJ
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