Dona Cida*, o que a trouxe aqui?
“Foi
a dor de não ter podido mais cantar o meu samba depois que eu me casei. Essa
dor sempre foi muito maior do que as dores dos partos e da perda recente que me
tornou viúva e finalmente, feliz! Acho que foi isso que me trouxe aqui, porque
como cristã não consigo superar a culpa que me tortura [...] por me sentir
aliviada [...] com a morte do meu marido. E já falando sobre o meu querer,
nessa altura da vida eu só quero voltar a cantar em paz...”
Por favor, fale-me um pouco mais
sobre isso…
“Bem,
você tem unhas grandes na mão direita modeladas para o violão porque elas têm o
formato de palhetas. E por eu saber reconhecer um violonista que o escolhi como
meu terapeuta, logo depois da sua palestra lá na Universidade dos Idosos. Nunca
me esqueço do que você falou sobre literatura como potencial expressivo da vida
pela escrita e pela musicalidade, afirmando como exemplo a grandeza da
‘escrevivência’ da Conceição Evaristo como forma de classificar a manifestação
das mulheres negras. [...] Sabe, pela primeira vez na minha vida eu decidi me
priorizar [...] para deixar de ser babá de netos para ser apenas avó, passando
a exercer o meu correto papel desde que os meus filhos procriaram… Meu marido
era branco e a família dele nunca me aceitou como mulher negra que sou… Ele foi
bom comigo somente enquanto éramos jovens... [mas] foi se tornando cada vez
mais racista, machista, prepotente tal qual sempre fora minha sogra comigo...”
“A
nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim para
incomodá-los em seus sonos injustos.” (EVARISTO) Pois, essa literatura pode ser
um pensamento fronteiriço de denúncia e diálogo para provocar descobertas
subjetivas transformadoras fomentadas numa interseção entre partilhante e
filósofo clínico. Afinal, “aquilo que o pensamento de fronteira produz é uma
redefinição/subsunção da cidadania e da democracia, dos direitos humanos, da
humanidade e das relações econômicas...” (GROSFOGUEL, 2010, p. 481)
* Pseudônimo.
Referências:
EVARISTO, Conceição. Entrevista
concedida em setembro de 2017. Disponível:
https://www.youtube.com/watch?v=4EwKXpTIBhE. Acesso 18 de maio de 2019.
GROSFOGUEL, Ramón. Para
descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais:
transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa, MENESES, Maria Paula (org.) Epistemologias do Sul. São
Paulo: Cortez, 2010, p. 455-491.
*Prof. Dr. Pablo Eugênio Mendes
Filósofo. Musicista. Poeta. Educador.
Filósofo Clínico.
Uberlândia/MG
**Artigo publicado originalmente
na edição de inverno da Revista da Casa da Filosofia Clínica
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