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A linguagem das lágrimas*

Há momentos em que o silêncio se torna verbo. Em que o corpo, sem pedir licença, fala por meio das lágrimas. Elas escorrem como cartas escritas pela alma, revelando o que não pode ser dito com palavras. São confissões líquidas, desabafos silenciosos, súplicas que se derramam no rosto como se buscassem abrigo em quem as vê. As lágrimas têm uma gramática própria. Não seguem regras sintáticas, não precisam de pontuação. Elas se expressam em pausas, em soluços entrecortados, em respirações ofegantes que interrompem a fala. Às vezes, dizem mais no intervalo entre um soluço e outro do que qualquer discurso bem articulado. Há um tipo de verdade que só se revela quando o corpo já não consegue sustentar o peso do que sente. Chorar é, muitas vezes, um ato de coragem. É permitir que o mundo veja o que há por dentro, mesmo que por instantes. É abrir uma fresta na armadura que se veste todos os dias para enfrentar a vida. As lágrimas não pedem permissão para cair. Elas simplesmente vêm, como se...
Postagens recentes

Desarrazoados***

  A palavra possui múltiplas formas de expressão, quase sempre refém de seu uso. Compreender um sentido reivindica uma reciprocidade com suas circunstâncias, a querer dizer sobre a fonte de onde partiu. João Paulo Alberto Coelho Barreto (João do Rio), nasceu em 05/08/1881 na rua do Hospício, no Rio de Janeiro, partiu em 1921. O autor retratou com maestria sua cidade no início do século XX, ou seja, ao exercitar um aprendizado peripatético, semelhante aos pensadores gregos, caminhava e anotava o que via, sentia, percebia com os óculos de suas possibilidades. É preciso talento para transcrever a fenomenologia das ruas, sua poética, peculiaridades, personagens, as casas e prédios colocados abaixo para renascer noutra esquina. As pessoas e seus trajes, chapéus, sapatos, convicções, inseguranças. Bem como aquilo que se refugia na expressividade de seus dias.     João do Rio diz assim: “Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! (...

No intervalo lucidez louca*

Não sou Clarice mas sinto desejo de expressar o que corre em minha alma sem virgulas e pontos finais num pensar que vai acontecendo sem censura na loucura de ser quem sou no perder e me achar no meio destas escutas do meu ser terapeuta mulher amante amiga mãe múltiplas de mim que dissolvem e se unem no tagarelar e silenciar sorrir chorar deixando sair Dioniso com suas bacantes homenageando Afrodite nos pés de mercúrio em direção a Júpiter me embriagando de palavras em poesia me encantando com o tudo e o nada sentindo o caos no cosmos infinito fazendo intervalos no respirar não precisando seguir normas nem ser perfeita comer pipoca sem culpa de ser feliz barulho de ambulância lá fora na espera de meu pai que parte e ainda dorme em paz sabendo nada do depois mais fiando que existe algo indefinido na certeza deus no meio de muitas dúvidas fazendo as pazes com as máquinas e convivendo nos intervalos com distantes virtuais que se tornam presentes e me aquecem como este café quente nesta tar...

Antipsiquiatria e filosofia clínica***

A psiquiatria biológica não é medicina, não é científica, seus medicamentos não são tratamentos e seu livro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM em inglês) não diag-nostica nenhuma doença mental. Mas se tudo isso for uma verdade, o que tem a ver com a filosofia clínica? Sem entrar na questão ideológica que há por trás da psiquiatria biológica - a construção de conceitos de “doenças mentais, o jogo do lucro que promove, favorece e impulsiona a indústria farmacêutica e o grupo de elite dos criadores da medicalização da vida, a reengenharia social através dos poderes institucionais da própria psiquiatria e das instituições que a apoiam etc. - ela é o oposto contraditório da filosofia clínica na questão de como se percebe o fenômeno humano. Em primeiro lugar, a psiquiatria biológica usa do verniz da medicina e da ciência como formas de “investigar” o comportamento humano. Digo “verniz” porque não passa disso, pois, psiquiatria biológica não é medicina nem ciência. M...

Literatura na vida e na clínica*

Relação continuada que sobrevoa ideias complexas e aterrissa em sensações, a nossa e a dos livros. Quem já não capturou ou se deixou capturar pelas emoções, até dos jargões neles contidos. Galeano, no enfrentar silêncios para recuperar o não dito, é danado. Ele nos faz reverberar em outro plano, flexibiliza o fadado. Momento do devaneio poético, diria Bachelard. De tanto concentrar para ordenar imagens - como plantas, necessitam de terra e de céu - o imagético enlaça o simbólico e encontra novos imaginários. Jung, Campbell... O escarcéu. Utopia... Por intermédio dos livros exercitamos maneira nata, em seus mais diversos gêneros, de enxergar a nós mesmos e até manejar circunstância que mata. Distopia... As pessoas no Pessoa acordam outras em nós. Qual a sintonia... Termos agendados no intelecto partejando ideias... Ressignifica e marca autogenia. Navegar Camões nos arrebata. Ora pela tormenta que clama por sonhos. Ora pela calmaria que suspende a vida que a nós se ata. Clarice é seca pa...

Filosofia clínica e discurso existencial*

  Para ler o texto clique no link: Filosofia clínica e discurso existencial | Sílex   

Unanimidade Científica?*

Amigos, não existe “a posição da ciência”. Como mostraram Bachelard, Kuhn, Feyerabend e muitos outros depois deles, a idéia de uma posição unitária da ciência não passa de uma idealização, de uma sinédoque, de uma personificação. "A ciência" não afirma nada; "a ciência" não sustenta posição nenhuma. Quem afirma, quem sustenta as suas posições, são "os cientistas" e "os grupos de pesquisa". E eles não afirmam nada em uníssono, eles não pensam em bloco: não existe unanimidade em nenhum campo científico. Como diz Feyerabend em "Ambiguità e armonia: lezioni trentine", "o monstro 'ciência' que fala com uma única voz é uma colagem feita por propagandistas, reducionistas e educadores. Dizer que 'somos obrigados a tomar a ciência como guia em questões relacionadas à realidade' não é só errado – é um conselho que não faz sentido". Afinal, em todos os ramos da investigação científica – na física, na biologia, na sociolog...

Quase certeza*

Desde que me lembro por gente, tentei fazer as coisas para agradar aos outros, queria que todos gostassem de mim. Cumpria aquilo que a cultura pregava como certo. Naquela época, a maneira digna e decente de se viver incluía obediência, perfeição, honestidade, estudo, trabalho, sucesso. Precisava provar para a família e a sociedade o meu valor, então segui todas as regras ao pé da letra. Nunca perdi o ano na escola, obedeci e respeitei meus pais e professores, fiz faculdade de Medicina, arranjei um emprego, casei no cartório e sinagoga, tive um filho. Sabe aquela propaganda de margarina com a família perfeita? Era mais ou menos assim, só faltou o cachorro correndo pelo jardim. O tempo passou voando, como se minha vida estivesse rodando por uma esteira rolante acelerada. Nem todas minhas escolhas foram minhas. Eu era ator de um roteiro planejado para mim e nem me dava conta. Mesmo assim eu gostava e me sentia bem. Recebia aplausos em todos os palcos. Não sei precisar quando nem com...

Cascas de Sonho*

“Nossos sentidos se desenvolveram de maneira diferente, e por isso precisamos usar a imaginação para ter uma vaga ideia do que acontece dentro das árvores.”                            Peter Wohlleben     O coração teme, sobreleva-se, alcança a dor do pensamento. O exercício de dar vida e sentido às frases é a metáfora movendo o fora do lugar. A linguagem que gagueja, cresce em momentos de perplexidade, nos momentos da solidão se põe a fazer versos, à deriva. Cria das histórias imaginárias, teorias no caminho, no andar em direção ao lado de lá, é este homem em páginas amarelecidas, em voz metalizada nas crostas de uma árvore secular. O melhor de tudo é quando o sonho é capturado logo no momento do acordar, anotações salvas, o sonho ganha uma vida. Meandros do inconsciente, tão real, um tipo de retomada de roteiro perdido. A adolescência está por trás...

Um breve relato terapêutico***

Em algum momento da minha vida as coisas não caminhavam bem. Os assuntos imediatos eram, principalmente, os conflitos éticos que rolavam no meu trabalho, relacionados aos colegas e clientes, as dificuldades de aceitar o mundo como ele é, e entender para onde eu iria me direcionar dalí pra diante. Pois bem, fui pra terapia. Meu plano de saúde dispõe de psicólogo. E assim, fui buscar ajuda. Era uma boa psicóloga e tínhamos uma interseção que habilitava o trabalho, embora desde o início houvesse alguns conflitos na nossa troca, pois era perceptível um ponto de vista divergente sobre questões que pra mim eram fundamentais. Trabalhando minha flexibilidade em relação a isso, pude percorrer um bom caminho por algumas sessões. Mas confesso que desde o início as consultas eram, em sua maioria, difíceis. Não havia um zelo com assuntos desconfortáveis, e o tratamento era aplicado de maneira repentina, gerando dificuldade de absorver as questões que acompanhavam as sessões e o tratamento dado ...

O primeiro passo para compreender a Filosofia Clínica*

O título ideal para um texto desse tipo sobre filosofia clínica, deveria ser: Abordagem do que não é possível ser abordado, guia para um texto que não deveria ser escrito. Controverso, não? Mas, nas linhas seguintes, explicitaremos o porquê que um título assim seria justificável. Para esclarecer nossa proposta, vamos nos remeter a Sócrates (469 a.C. – 399 a. C.) um ateniense que mudou o foco da filosofia Ocidental. Longe de nos determos em longas linhas acerca da história da filosofia, abordaremos apenas alguns traços desse pensador para servir ao fio condutor de nossa reflexão. Antes de Sócrates, havia pensadores denominados filósofos da natureza, ou seja, suas reflexões estavam voltadas para o todo, o cosmos, a ordem, a origem de tudo o que é. Depois desses pensadores, surge Sócrates inaugurando o pensamento mais antropológico. Ele não escreveu nada, tudo o que sabemos dele foi escrito por seus seguidores, como Platão, ou por opositores, como Aristófanes. Platão nos mostra que seu me...

Ponto Cego***

O conceito de paradigma é determinante nas concepções de mundos como vontade e representação, tanto para uma perspectiva subjetivista quanto objetivista. A história da ciência e do pensamento humano é marcada por contínuas rupturas paradigmáticas.  Teorias e crenças antes consideradas inquestionáveis foram por diversas vezes descartadas conforme descobertas, novos dados e perspectivas vieram à tona. Esse processo recorrente nem sempre ocorre sem resistência ou violência. Apegos a paradigmas estabelecidos, o que não é raro, pode criar um ponto cego epistêmico onde a própria estrutura de conhecimento em voga impede a percepção das suas limitações. Os paradigmas são estruturas fundamentais que moldam a forma como interpretamos o mundo. Segundo Morin (2005, p. 128), "um paradigma impõe seleção e organização do conhecimento, mas também exclui o que não se encaixa". Essa seleção pode se tornar um viés cognitivo ao restringir a percepção exclusivamente ao que reforça o paradigma vig...

A musa invisível***

  O tempo é uma das cinco categorias que compõem a primeira etapa do método. Alguns partilhantes possuem uma forte relação com essa categoria, que aparece sessão após sessão. Uns mais pautados pelo tempo objetivo, cronológico, outros pelo tempo subjetivo em uma relação muito íntima e específica com ela. Podem aparecer, por exemplo, dificuldades em cumprir horários, compromissos, gerando em outras pessoas de convívio social, interpretações, desconfortos existenciais, significados sobre a incapacidade de adequar-se ao padrão exigido. Algumas almas simplesmente não nasceram para o tempo cronológico. Em alguns casos, a obrigação de enquadrar-se nele anula inclinações pessoais, sonhos, buscas. Ao passo que, compreender sua relação com essa categoria e respeitar seu tempo subjetivo, possibilita que a pessoa volte a respirar, criar, sentir-se adequada em algum lugar dentro de si mesma – observe como isso interfere na categoria lugar e padrão autogênico – por isso, falamos em adequações ...

Expressividade*

Não! Não renuncio à vida. Não vou seguir atirando na sarjeta cada sagrado segundo desta breve viagem, nas mãos da racionalidade, civismo e bom senso excessivos... O que de selvagem me restou travestiu-se na fôrma da ignomínia. Todavia, o fogo que arde no âmago das profundezas da vera essência, derrete as tolices formais e devolve a verdade imprecisa, pura, inocente. E só assim há coerência; o que não há no medo, nem na medida. O que não há na causa, nem no efeito. O que não há no tempo, nem no espaço. Coisas essas, que somente existem na opressão em que nos afogamos por nossos próprios meios. E tampouco neste asqueroso âmbito temos qualquer mérito ou recompensa. Escravidão, escravidão! Cegueira, cegueira, coletiva cegueira!!! Se liberdade não há, que ao menos não haja o grilhão. Gênero? Instituições? Moral? Formação? Modelos de aparência e conduta? A quantas chaves mais deveríamos nos trancafiar num cotidiano oco, padrão, robótico, mecânico, eletrônico, com o controle remoto nas mãos d...

O escritor, o texto e a IA*

Hoje conversei com um amigo que me ajudará com o marketing digital. Ele me perguntou se escrevo com a IA. E riu quando respondi-lhe: "é evidente que não". Diante de sua surpresa - afinal, "todo mundo hoje escreve com IA" -, expliquei: a relação do escritor com o texto é diferente daquela do publicitário. Enquanto este visa ao texto acabado e eficaz, aquele define-se existencialmente no próprio ato da escrita. É como um maratonista. Há muitas maneiras rápidas, confortáveis e eficientes de chegar ao final dos tais quarenta e dois quilômetros. Mas se o maratonista tomasse um ônibus, não seria maratonista. Isso porque ele não corre para chegar a algum destino; ele corre pela própria corrida - pelo desconforto, pela exaustão, e pelo prazer supremo que daí emerge. Assim é com o escritor: ninguém é escritor por simplesmente entregar um texto; o escritor é aquele que, consciente de seu estilo, sofre e goza com a escolha de cada palavra, com a construção da cadência e do rit...