Logo depois de minha
formatura em medicina, não gostava de atender urgências. O motivo era um só:
interrompiam e atrapalhavam meus raros momentos de lazer. Cada vez que era chamado
para uma urgência, abnegadamente deixava para trás aquilo que estava
desfrutando (filme, parque, praia, festa, namoro, família, estudo, descanso)
para cumprir com o famoso juramento de Hipócrates.
Sempre soube que ser
médico exigiria certa dose de renúncia na vida pessoal, mas isto não era motivo
suficiente para aplacar meu descontentamento quando convocado para urgências.
Por isso, tentava driblar a insatisfação através de algumas compensações
materiais.
Quando meu filho era
pequeno, e, contra a vontade de ambos, nossa brincadeira era interrompida por
algum telefonema, dizia a ele que papai precisava sair para trabalhar, pois
alguém havia ficado doente e necessitava minha ajuda. Com isso ganharia algum
dinheiro e lhe daria uma parte para que comprasse balas, sorvetes,
figurinhas...
O menino não tinha
outra opção senão resignar-se à descontinuidade da brincadeira, entretanto, a
futura compensação financeira parecia deixá-lo menos infeliz. De minha parte,
continuava sentindo um certo desconforto e até um pouco de culpa.
Com o passar do tempo,
ele foi crescendo e até gostando dessas recompensas, a ponto de torcer para eu
ser chamado a trabalhar durante o plantão. Quando percebi a confusão,
amigavelmente rompemos o acordo.
O tempo passou, ele
cresceu mais ainda, tornou-se médico e agora também obriga-se a conviver com
urgências. Comentou que estava chateado porque precisaria sair de casa às 23
horas para atender uma cesariana. Aproveitei para lembrá-lo de nosso antigo
trato e contei como fazia antigamente para sobrelevar meu aborrecimento nestas
horas.
Considerava o pagamento
das urgências um rendimento extra que não era computado no balanço mensal e,
literalmente, torrava o montante comprando algo supérfluo, totalmente fora do
orçamento. Aquilo aplacava meu desgosto e até desviava o pensamento para um
lado consumista enrustido. Talvez não fosse a melhor conduta, mas era como eu
me comportava. Comigo funcionava, o mal estar diminuia.
Enquanto ele saiu na
madrugada para trabalhar, fiquei pensando se, ao sugerir essa forma de encarar
urgências, não estaria cometendo o mesmo equívoco da infância, ou seja,
estimular a busca da felicidade através de bens materiais.
Gostaria que meu filho
encontrasse a sua maneira de bem levar a vida, sem grandes sofrimentos pelas
renúncias inerentes à profissão. Talvez uma condição emocional mais lúdica e
menos financeira. Por vezes sofremos muito com o pouco que nos falta e gozamos
pouco o muito que já temos.
Bens materiais
adquiridos com o trabalho inevitávelmente se desgastam com o tempo e, por mais
que se acumulem, nunca serão suficientes para alcançar a felicidade. Zibia
Gasparetto dizia que o segredo da felicidade está em escolher a comédia e
largar o drama.
Filho, quando tiveres
uma urgência médica, um problema, um desafio, um grande sofrimento ou qualquer
outro contratempo que te afaste da felicidade, lembra do caminho para
encontrá-la:
Conquiste-me, não me
adquira;
Quero ser teu bem, não
um dos teus bens;
O teu sonho de vida,
não de consumo.
E acima de tudo, saiba
que por melhor que te remunerem, algumas coisas jamais poderão ser compradas.
Ajudar uma criança a nascer, aliviar a dor de quem sofre, salvar a vida de um
moribundo é um privilégio de poucos. Não têm preço. Participar destes momentos
mágicos é uma experiência maravilhosa. Se estás sendo chamado para o milagre da
vida, aproveita. Vale a pena. Esta é a diferença entre ser médico e ser formado
em medicina.
*Ildo Meyer
Médico, escritor, filósofo clínico
Porto Alegre/RS
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