Durante anos
trabalhando como anestesiologista, acompanhei milhares de pacientes e aprendi
que é possível planejar a qualidade do sono que lhes é oferecido. No inicio da profissão,
realizava o procedimento de maneira estritamente técnico-científica. Instalava
um cateter no braço do paciente, injetava o anestésico, fazia-o dormir, mantinha seus sinais vitais estáveis, e,
finalmente, acordava-o devolvendo-lhe o
controle de sua vida. Fazia o papel de uma sentinela que zelava pela segurança
física durante o sono involuntário.
De tanto observar o
sono alheio, percebi que nem todos adormeciam da mesma maneira, e nem todos
despertavam igual. Mas isto não tinha nada a ver com o tipo ou dose de
anestésico que estava utilizando. O estado emocional dos pacientes é que fazia
a diferença no dormir e acordar.
Enquanto uns se
entregavam ao sono, outros resistiam. Enquanto alguns dormiam serenamente,
outros se agitavam. Enquanto outros aparentavam felicidade, outros mais estavam
contraídos e lacrimejando. Aprendi também que se o sono for bom, o acordar é
melhor ainda. O contrário também é válido, aqueles que vão dormir intranqüilos,
não terão paz e o sono será um verdadeiro castigo. Acordarão massacrados e
enfrentarão um péssimo dia seguinte. Quem dorme com dúvidas, passa o dia sem
certezas. Por conta de tudo isto, passei a encarar o sono como algo sagrado e
me preocupar com o ritual da entrega ao sono.
Nunca vi um paciente
dormir tranqüilo e acordar chorando. A exceção a esta regra são os pesadelos.
Por outro lado, quase todos que dormem angustiados e chorando, acordam da mesma
maneira. Adormecer em paz é um
privilégio. Às vezes é preciso dormir, dormir muito. Não para fugir, mas para
descansar a alma. Quando se dorme bem, volta-se a ser criança, como se houvesse
um refúgio, um lugar secreto na vida em que os pensamentos adormecem e os
sonhos despertam.
Alguns até fazem um
trocadilho dizendo que é dormindo que acordamos os sonhos, pois é justamente
quando se perde a consciência, que os sonhos têm o poder de despertar
emocionalmente aqueles que conscientes encontram-se em sono existencial
profundo, quase em coma. Dizendo de outra forma, é dormindo que relaxamos e
deixamos as emoções livres para se manifestar através dos sonhos. O sonho é
para a alma aquilo que o sono é para o corpo.
Fisicamente falando,
não tenho dúvida alguma de que para um paciente dormir tranqüilo é preciso
estar seguro de que não será molestado, roubado em seus pertences, e que
acordará novamente em condições iguais as que foi dormir. Quem dorme está
indefeso, frágil, a mercê, e nunca pode
ter certeza do que vai acontecer enquanto dorme. Emocionalmente, o dormir é mais trabalhoso e difícil de
generalizar.
Lembram quando éramos
crianças? Nossos pais contavam histórias e cantavam na hora de dormir. Repetiam
as histórias ou nós mesmos pedíamos que repetissem. Não cansávamos de escutar.
.A história não era importante, queríamos alguém ao nosso lado. Não queríamos
dormir sozinhos, precisávamos estar seguros que seriamos cuidados enquanto
dormíamos. A função da canção de ninar e
das histórias era tirar o medo a fim de que o sono fosse tranqüilo.
Quem dorme volta a ser
criança. Frágil, carente, ansiosa, medrosa. Por isto, na hora de anestesiar
assumo o papel de pai e mãe. É minha função fazer da conversa pré operatória
uma canção de ninar. Transformar a sala
de cirurgia, fria e impessoal, em um berço aconchegante. Segurar na mão do
paciente enquanto dorme e assegurar que vou continuar ao seu lado até que abra
os olhos novamente e acorde.
Não é qualquer pessoa
que tira o medo de dormir de uma criança. Não é qualquer conversa que espanta o
medo de um paciente e o faz dormir tranqüilo. Não é bom dormir enquanto não
houver paz. É preciso transmitir acolhimento, carinho, compaixão, envolvimento.
Antigamente anestesiava apenas o corpo fisico, hoje converso e peço licença à
alma antes de fazer o corpo adormecer.
Dependendo de como se diz, um "dorme bem" vale muito. O
paciente dorme e acorda sorrindo.
Este artigo foi escrito
originalmente visando o paciente anestesiado num leito hospitalar, mas os
cuidados valem para todos os tipos de
camas, sofás, redes, tapetes. Durma bem, conta comigo, te vejo amanhã, te amo,
são palavras que quando entregues sinceramente, funcionam melhor que
anestésicos. Despertam a alma.
*Ildo Meyer
Médico, Escritor, Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS
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