Como vai amigo Tião?
Estou escrevendo pra te contar as coisas estranhas que estão
acontecendo nas minhas férias aqui na praia de Jurerê Internacional. Já
ouvistes falar? É um lugar fantástico, nunca vi nada igual. Praia de gente rica
e famosa. Mar azul, calmo, água quente, areia fininha, lanchas, iates, vendedores
ambulantes, comida e bebida à vontade. Mas não pude aproveitar nada disto, nem
vais acreditar.
Logo que chegamos no prédio onde iríamos veranear, bem em frente à
praia, já estranhei. Parecia uma vitrine de loja. Todo envidraçado, com
mármores, espelhos e lustres de cristal enormes. Quase fiquei cego de tanta luz
e mal conseguia caminhar naquele piso escorregadio. De repente, apareceu um
homem vestido de terno preto e gravata, me pegou no colo e me carregou até
nosso apartamento. Nunca ninguém havia feito isto comigo, e por pouco não o
mordi de tão assustado que fiquei.
Depois me explicaram que não permitem animais circulando nas áreas
comuns do prédio. Dizem que podemos morder alguém, fazer baderna, quebrar os
enfeites e sujar o piso das residências. Afinal de contas, fomos domesticados
ou não?
Só me deixavam caminhar dentro do apartamento ou na rua. Mas caminhar
não é aquilo que estamos acostumados a fazer, correndo atrás das carroças, dos
carros, da boiada. Nada disso. Prenderam uma coleira em meu pescoço, amarrada
numa corda de mais ou menos dois metros, e me obrigavam a andar no ritmo quase
parando de dona Maria. Quando queria cheirar alguma árvore ou o traseiro de alguma
cadelinha, recebia um puxão que quase me arrancava a cabeça fora. Precisei me
acostumar a andar no passo dos humanos.
Mas isto não é tudo. Imagina a minha vergonha quando colocaram
sapatinhos em minhas patas para que eu não as sujasse durante o passeio. Ainda
bem que não encontrei nenhum conhecido por aqui. Nem latir eu podia. Cada vez
que tentava dizer alguma coisa, expressar minha alegria ou reclamar de algo
levantando a voz, imediatamente me mandavam calar para não perturbar os
vizinhos. Sabe o que é ficar um dia inteiro sem falar nada, sem latir pra
ninguém? Imagina então um mês inteiro.
Descobri também que nas minhas férias eu teria horário pra fazer xixi.
Duas vezes por dia, na hora que eles determinavam, me pegavam no colo ou me
colocavam num carrinho de bebê, e me
levavam pra urinar na rua. Por via das
dúvidas, colocaram um tapetinho em um canto da sacada para uma emergência, caso
não conseguisse me controlar. Aquele nosso costume de marcar o território
urinando em todos os postes e árvores foi abolido nas férias.
Outra coisa esquisita era ver o pessoal recolhendo minhas fezes na
rua. Cada vez que eu fazia cocô na grama ou na calçada de alguma daquelas
mansões de cinema, meus donos faziam cara de vergonha, olhavam em volta para
ver se ninguém estava vendo, e, em seguida, colocavam minha “obra” num saco
plástico e ficavam carregando aquilo como se fosse uma sacola de compras. Às
vezes encontravam um conhecido, paravam e conversavam com aquela bolsa
pendurada no braço por um bom tempo. Depois, jogavam no lixo.
Lembra como eram gostosos aqueles nossos banhos de chuva ou quando
nadávamos horas a fio no rio? Pois aqui animais não podem entrar no mar, nem
caminhar na praia. Muito menos ficar se rolando na areia. Sabe como eu tomava
banho em Jurerê Internacional? Levavam-me para uma casa muito sofisticada, de
nome Luxury Pet. Uma espécie de salão de beleza onde havia enormes banheiras de
mármore importado, com hidromassagem, sais aromáticos, música relaxante e uma
tal de cromoterapia. Muita frescura para um banho. Deixavam-me mergulhado meia
hora naquele caldo perfumado, depois secador de cabelos e uma mulher quase
arrancando meus pelos com uma escova pra ficarem lisinhos como os da Malvina
Cruela, aquela dos 101 dálmatas.
Na saída, baforavam litros de perfume importado e então vinha a
vergonha maior: um lencinho atado no pescoço, como se eu fosse um galã
francês. Nestas horas, esquecem que
somos animais e nos tratam como humanos. Dona Maria chegava para me buscar no
carrão com motorista, me cheirava, fazia carinhos e dizia sempre a mesma frase:
-meu amorzinho querido, filhinho da mamãe.
Que história é essa de filhinho da mamãe? Acho que estes humanos não
regulam bem das idéias. Minha mãe está ai na fazenda, com meus irmãos, correndo
e latindo felizes pelos campos. Nascemos e fomos criados em volta da casa
grande, onde nos colocavam restos de comida nos pratos e lambíamos os lábios
com os ossos que atiravam para pegarmos. Desde pequeno me ensinaram a respeitar
os donos da casa e obedecê-los. Depois me disseram que além da casa, eram
nossos donos também. Nunca entendi direito esta relação de posse. Só porque
vivo nos campos deles e me dão comida, isto significa que são meus donos? Em todo o caso, a idéia de ter dono já foi
incorporada desde que nasci, mas achar que eles são meus pais, chega a
subestimar nossa inteligência.
Falando em comida, aqui não adianta fazer aquele nosso olhar de
“cachorro pidão” implorando por algo comestível. A única coisa que me deram pra
comer, durante todo o mês que aqui passamos, foram umas bolinhas
industrializadas, importadas, antialérgicas, com gosto artificial de churrasco.
Falsificado e ruim. É uma tal de ração
com proteínas e ômega 3, que promete uma vida mais saudável para nós. Que
saudade das ovelhas carneadas, chego a sonhar com aqueles ossos de costelas
assadas no braseiro.
Acho que é por isto que os cachorros daqui tem um olhar triste, parece
que estão sempre deprimidos. Dificilmente abanam o rabo, lambem seus amigos ou
pulam de alegria. Estes dias fui me engraçar com uma cadelinha bem bonita que
estava passeando no calçadão da beira mar. Assim que me aproximei ela foi
avisando baixinho, quase sussurrando, que não me excitasse, pois havia sido
castrada para evitar problemas para seus donos. Não entrava mais no cio e nem
tinha mais apetite sexual. Contou-me que agora está freqüentando uma clinica
psiquiátrica anti-stress.
Tião, amigo velho, se isto aqui é o que os humanos chamam de férias,
nunca mais quero sair de nosso velho e querido pago. Estes cãezinhos de madame,
aprisionados dentro de casas e
apartamentos de luxo, não sabem mais se são cachorros ou humanos. Perderam a
identidade.
Em algumas situações são considerados animais, em outras são
domesticados e em outras, são humanos. É uma confusão que nem cachorros, nem
humanos entendem. Para o meu gosto, não são nem uma coisa, nem outra. Nem
cachorros, nem humanos. Nem animais, nem domesticados. Nem felizes, nem
tristes. Nem mortos de fome, nem bem alimentados. Nem vivos, nem mortos. Viraram
uma nova espécie de animal. São os Pets. Coitados.
Contando os dias pra voltar a ser cão.
*Ildo Meyer
Médico, Escritor, Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS
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