Por uma questão de
conhecimento científico, conhecimento aquele que pretende ser o mais acurado e
rigoroso, muitas vezes destacamos uma parte do todo para dar mais ênfase no
estudo, na averiguação, na pesquisa, enfim, para aprofundar o conhecimento
deste tópico.
Assim, por exemplo,
falamos coisas do tipo: “Na armadilha conceitual o ponto cego acaba por nos
deixar prejudicados. Pois o ponto cego acaba por tomar decisões por nós e nos
impossibilita de perceber ou sentir com mais clareza”, e por aí vai. Quando falamos
dessa forma, quando abstraímos uma parte do todo para melhor entendimento ou
pesquisa daquele tópico, sem querer, muitas vezes, acabamos criando um particular excluído do todo, isto é, fazemos
ontologia. O ponto cego, no exemplo,
acaba por ser entendido e tratado como se fosse um ente de subsistência
própria, destacada do todo.
Criamos ontologicamente
um particular e, portanto, como consequência,
um universal. O universal é aquilo
que identifica os particulares e o destaca de outros grupos de universais,
portanto ponto cego tem algumas
características que o distinguem, por exemplo, de um apenas erro epistemológico
intencional. Assim, quando criamos o ente
particular também criamos as características que o definem tanto em
semelhança com seus pares quanto em diferenças de outros particulares, ou seja,
criamos o universal.
O problema dessa forma
de análise de uma parte destacada do todo só se torna realmente um problema se considerarmos
esse particular como um ente subsistente por conta própria sem interação com o
resto. O que era apenas um experimento mental para desenvolver um conhecimento
acaba por ser gerador de entidades.
Aliás, é assim que acabamos
falando que o cérebro toma decisões,
escolhe, analisa, planeja, etc. Ou que as ações que tomamos em nossas vidas vêm
de um ente especial, destacado de nós mesmos, chamado inconsciente.
Veja bem, não que o
cérebro não seja importante nas decisões, escolhas, análises e planejamentos
que tomamos, mas somos nós por inteiro que realizamos tudo isso. Assim como não
há como negar que temos atitudes e comportamentos não conscientes, automatizados,
com causas que não conhecemos, mas isso não é o mesmo que delimitar um ente
subsistente por si mesmo chamado inconsciente
que interage e com a gente e nos comanda. Inconsciente é uma parte de nós
mesmos, como o cérebro, e o ponto cego.
Quando fazemos uma
analogia para algo mais banal, como por exemplo nossa mão, não podemos dizer
que ela, por mais importante que seja em nossas vidas e tenha funções múltiplas
em nossos afazeres, tenha subsistência própria independente de nós como um
todo. Histórias de ficção sobre a mão que sai de madrugada enquanto seu dono
dorme, e comete assassinatos sem o indivíduo tomar conhecimento, é muito legal
e criativo, mas é uma bobagem epistemológica e científica.
Aristóteles já dizia
isso, que quando alguma mão está descartada do resto do corpo ela é mão só por
homonímia, mas não é mais mão no sentido que só quando está integrada ao corpo
tem. É o todo que a qualifica tanto em questão das funções quanto em definição.
Ao pensarmos alguma mão separada do corpo, não conseguimos a pensar como um
ente subsistente de forma independente.
Mas quando se comete
esse tipo de pensamento com abstrações fica mais difícil reconhecer a falácia
lógica e ontológica. Mesmo quando essa falácia é levada a cabo com um ente
físico, como o cérebro, como este é tão desconhecido daqueles que o possuem
quanto daqueles que o estudam, também fica fácil de não reconhecer a falácia.
O conhecimento científico
e sua particularização epistemológica, uma analítica minuciosa de tudo o que
existe, tem por consequência criar vários entes particulares como se fossem
subsistentes por si próprios. Mas até aí não é o problema, o problema é acreditarmos que eles são entes
ontologicamente autosubsistentes.
O ponto cego não nos
deixa em maus lençóis, o cérebro não toma decisões por nós, o inconsciente não
escolhe nossos caminhos. Nenhum deles existe sem a dimensão do todo de que
somos parte. É claro que criar particulares e, consequentemente, universais,
facilita o entendimento e situa epistemologicamente melhor uma pesquisa, mas
esse atalho cognitivo tem um preço que é o da desfragmentação do eu e do todo em que nos situamos.
*Fernando Fontoura
Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS
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