Pular para o conteúdo principal

Postagens

Notas de Lisboa*

  “O vento, enfim, parou Já mal o vejo por sobre o Tejo E já tudo pode ser tudo aquilo que parece Na Lisboa que amanhece” (Sergio Godinho)   “Vejo esta cidade parada no tempo deve ser saudade a vista que invento” (Pedro Ayres Magalhães – Lisboa Rainha do Mar – Madredeus)   Se eu pudesse levar uma trilha sonora para onde quer que fosse, escutar, ver o mundo por dentro, entranhas fincadas na memória, à maneira de um passante, errante, dono do seu devaneio. À toa o Ser. Um desavisado, já dizia Bergson, em outro canto da vida: o passado expandindo-se no seu presente, permanecendo tão atual, a ação, movimentos dos corpos por noites em Lisboa. E, por dentro, lá se vai manhã que acorda os sonhadores depois da luz, bem antes da salvação dos navios mercantes, sanguinários. Ter o espaço imaginário, as frestas da vida, entre o contínuo movimento, longa viagem do corpo, renasce, tempo penetra, entre lágrimas e riso, lá do alto dos afagos noturnos da cidade que abraça e b

A escuta compreensiva na clínica filosófica*

Ao iniciar essa análise faço um convite a você, caro leitor. Partirmos da noção de singularidade como pressuposto para que possamos, juntos, seguir no progresso deste estudo. De maneira breve a singularidade, na Filosofia Clínica, é um conjunto de fenômenos que compõem o partilhante e sua medida de relação e interseção com o mundo interno, externo e, também, com outras pessoas. O esperado é que o Filósofo Clínico mantenha- se despido de seu juízo e valor pessoal. Por sua vez, essa atitude propicia um ambiente onde aquele que compartilha sua história pode ser conhecido através de seus próprios critérios. A escuta realizada na prática terapêutica prevê a literalidade, ou seja, aquilo que é dito deve ser compreendido e não interpretado. O ser humano singular é o mar por onde o filósofo clínico navega. É dentro das condições apresentadas por este mar que se manifesta a Filosofia Clínica. Articulando os elementos citados acima cria-se uma atmosfera que protege o partilhante. Constitui

Anotações e reflexões de um Filósofo Clínico*

Amanhã, após meses de espera, chega à nossa casa a biblioteca. Foi uma imensa burocracia: dezenas de caixas, milhares de livros, aguardando a autorização para o embarque num contêiner - e depois a longuíssima espera na alfândega no porto de Lisboa. A espera na chegada foi especialmente longa: as caixas com os milhares de livros foram selecionadas pelos agentes da alfândega para uma inspeção detalhada. Afinal, quem, em 2022, gasta (não pouco) dinheiro para carregar uma biblioteca para outro país? Imagino a decepção (ou a felicidade) dos agentes ao descobrirem que não, ali não havia nem traço de contrabando: era somente a mudança de um professor de filosofia. * * * Alguns amigos me criticaram: eu deveria passar a carregar a minha biblioteca num pendrive. Sim, eu entendo: é muito mais barato e prático ter livros digitais. Eles não custam caro, podem ser levados a qualquer lugar sem esforço, não demandam vários cômodos para a sua organização. Todavia, a minha relação com os livro

Sou feliz e não sabia*

Algumas coisas são difíceis ou impossíveis de explicar ou definir com palavras. Se tentarmos enquadrá-las em algum conceito, imediatamente as perdemos. Quer um exemplo? Felicidade é aquilo que sentimos quando comemos uma barra de chocolate. Será? Nem todos gostam de chocolate, e mesmo os que adoram, podem ficar felizes com o sabor doce em suas bocas, mas ao mesmo tempo, arrependidos por ingerirem calorias engordantes. Vou complicar um pouco mais. Onde está escrito que não se pode estar feliz e arrependido ao mesmo tempo? Ou feliz e angustiado simultaneamente? O compositor Martinho da Vila já cantava: “Felicidade, passei no vestibular, mas a faculdade, ela é particular. Livros tão caros, tanta taxa pra pagar..” Sentimentos são únicos, particulares, personalizados, cada qual sente a sua maneira, e por isso mesmo, não podemos universalizá-los sob risco de não se enquadrarem no modo de sentir de todos ou de alguns. Fazemos aproximações e metáforas tentando expressar com palavras al

Clínica não pastoral***

Elevador do prédio do consultório uma moça fala pra outra, apontando pra mim: “Você se decida, se não vai ter que ir falar com este doutor aqui!” Quem lê isso pode achar que sei o que ela deve fazer. E – Acredite! – tem muito terapeuta que vai nessa que sabe o melhor a fazer, o caminho a seguir, sem ter a mínima ideia de quem é a pessoa.  Tem algumas pressuposições genéricas de como uma moça dessa idade pensa, faz e sente, do que é importante pra ela na vida, e será a partir disso que vai aconselhá-la.  Age como bom pastor ao conduzir rebanho: ovelhas para o pasto, fiéis para a salvação, essa moça para a melhor decisão. Já sabe de antemão pra onde ela deve ir, como decidir sua vida. Quase um lugar comum. Mesas dos bares além dos chopps estão abarrotadas de conselhos fáceis que raramente tocam a quem se dirigem. Cada um olha e fala a partir da sua vida, de como vê o mundo. Quase sempre não tem nada a ver com a pessoa. A mim, filósofo clínico, cabe suportar e susten-tar minha ignorânci

Buscas e singularidades existenciais***

Nas primaveras de 2007, 2008, 2009 e 2010, após centenas de sessões, entendemos que já era chegado o momento de partir, cada um para uma direção própria e singular, intencionada para não mais proporcionar encontros terapêuticos presenciais. A partilhante em questão, uma profissional bem-sucedida da Engenharia da Computação e especializada em Inteligência Artificial, não satisfeita com o diagnóstico de autismo que veio somente aos 35 anos, iniciou uma busca que ela mesma nominou de “autoconhecimento versão 2.0”. Ela tirava as suas férias sempre nas primaveras, hospedava-se num hotel da cidade de Porto Alegre/RS e desde o primeiro dia dessa estação comparecia pontualmente às nossas sessões sempre previstas para ocorrerem das 7:30 às 8:45h no nosso consultório itinerante situado no parque da Redenção. Como regra, trabalhávamos de segunda a sábado, fizesse chuva, fizesse sol, e, como exceção, aos domingos, ela escolhera comparecer ao parque sempre sozinha para fazer o mesmo trajeto filos

Comentário ao livro “Poéticas da Singularidade”, de Hélio Strassburger (Editora E-papers/RJ/2007)

“Nem sabia se era começo ou fim. Poderia ser tudo ou nada.”                          Helio Strassburger                                                                                                                A impressão durante quase toda a leitura é de estar diante de uma poesia. Não há absolutamente nenhuma indução neste sentido pelo título; é que ela está presente em sua fala, tanto quanto na singularidade. O ritmo é o da poesia que provoca, que não quer esclarecer, mas dar uma chance aos mais epistemológicos de se deliciar. Hélio força o leitor a fazer certo ajuste para entrar no mundo da especulação e acredito que este seja pelo menos uma de suas características. A ausência de pronomes definidos e a sensação de que estamos a todo o momento sendo levados a um caminho de sugestões – como um convite a um passeio pela complexidade das palavras – expressam bem esse sentimento. Não há obviedade na leitura, mas e daí... também não há nenhuma no ser humano (pré-juízos meus!

A Pretexto de jardins***

Existe uma fonte extraordinária em que a obra de arte decaída se encontra. Nela é visível o apelo silencioso das raridades. Nalgumas pode se notar a exuberância dos contornos, em outras a raiz mergulha na terra em busca de proteção. Ainda àquelas a lançar sementes na brisa passageira. Quando muito próximo pode significar conviver com os espinhos uma da outra. Os sinais descrevem nuances de uma estória em que antes e agora se integram, fazendo a pétala renascer, se alternando nas estações. Sua essência plural realiza uma poesia sem palavras nesses espelhos da natureza. Existem jardins com uma história de descuidos, maltratados uma vida inteira. Ao vivenciar alguma forma de atenção, carinho, perseguem o subsolo de si mesmos. Nesse sentido, desacostumados à luz do sol, num movimento de quase semente, se refugiam nas sombras conhecidas, cercam-se de muros, paredes de difícil acesso. O dom da jardinagem conhece a linguagem ritual de morte e renascimento. Esses movimentos deixam rastro

Preço de banana e o que a Filosofia Clínica tem a ver com isso*

Primeiramente, reforça um de seus pressupostos teóricos mais basilares: a analítica da linguagem que “Acredita que os problemas filosóficos possam e devam ser resolvidos por meio de uma análise da linguagem”, escreve Margarida Nichele Paulo em seu Compêndio de Filosofia Clínica (2001). E, simultaneamente, reafirma alguns de seus pressupostos metodológicos: os termos equívocos, o significado, a atualização de dados, dentre alguns submodos. Serve, minimamente, para evidenciar, também, a singularidade de uma língua, como a portuguesa, e a autogenia, enquanto mudança, movimento. “Wittgenstein ensina que o sentido e o direcionamento das palavras usadas para construir um discurso pessoal tem a ver com determinada realidade, como esta foi se estruturando ao longo da vida, e inclusive suas possibilidades de mudança.”, confirma Hélio Strassburger em Filosofia Clínica: anotações e reflexões de um consultório. (2021) Houve um tempo em que a expressão “preço de banana” equivalia a barato, se

Sobre os deslizes das margens*

  Um cotidiano inacreditável compartilha suas origens na contradição com o mundo normal. Seu viés, ao surpreender a lógica dos princípios de verdade, descreve um saber estrangeiro. Sua expressividade insinua uma pluralidade estética. Sua dialética existencial se apresenta nas escolhas, atitudes, alternância de papéis existenciais. Pressentindo seus deslocamentos e a linguagem por onde se diz, pode-se acolher e traduzir a pátria exilada em si mesma. Sua irrealização aprecia reescrever para além de uma vida acumulando raízes. Ao espírito de rebanho, normalizado pela drogaria psiquiátrica, ser singular é doença. Nesse imenso território de dúvidas, inseguranças, um sujeito ameaça surgir. Seu deslize pessoal, ao mencionar os labirintos da subjetividade, amplia o fenômeno humano desconsiderado. Esse rascunho permanece invisível ao olhar cotidiano. Manuscritos precursores em tratativas de libertação. Sua lógica delirante esboça uma poética da singularidade. Com o vislumbre desses instan

O que significa dizer que o filósofo clínico é um aprendiz?*

Embora seja apresentado em cursos que variam entre 18 e 24 meses, o conteúdo da filosofia clínica preencheria tranquilamente uma formação de quatro anos com a carga horária de uma graduação. Ainda assim, continuaria sendo um curso com conteúdos introdutórios. Um filósofo clínico aprende a teoria, realiza a formação da prática, mas precisará continuar seus estudos teóricos e práticos por toda a vida. A alma humana não se esgota em uma formação. O certificado que habilita à clínica é uma autorização e não a comprovação de que não há nada mais a ser aprendido. A filosofia clínica é um aprendizado para a vida toda. Hoje, dez anos depois de ter iniciado minha formação, me vejo tão iniciante quanto meus alunos que estão há alguns meses na formação. Meus professores são os filósofos clínicos com os quais converso, os artigos e livros que leio, os áudios e vídeos que acompanho, e os partilhantes que atendo semanalmente. Ser filósofo clínico é permanecer aprendiz, é se ver como iniciant

Tempo*

".... de receber do tempo o sonho mais profundo.”                             e. e. cummings   Deslocamento existencial. O caminho entre a juventude e a leitura, passando pela dor constante do tempo perdido, do amor, da guerra, da morte, o falso-dorso, entre páginas marcadas por cintilante tinta, o esquecido entre as estantes, livro empoeirado, leitura retomada, a lentidão do passo, o caminhar até a cozinha, o ir até a piscina, nadar para salvar a alma do cansaço, uma dose de esperança, coração, a mão e braços em movimento constante. O aprendizado da vida, retilíneo de uma margem a outro lado do rio, olhar em viagem constante, o remédio em dose, a pressão arterial em sinfonia com violinos, abatimentos ocultos, o corpo em sincronia com o tempo de viver, o acordar antes que o tempo se apresse, o café ao sol, a fruta seca à janela, o pássaro que canta na palmeira. O primeiro dia da semana, o copo de vinho depois do expediente, a leitura final no começo da noite. A eterna solidã

A obra: "Introdução à Filosofia Clínica" de Miguel Angelo Caruzo tem sua primeira reimpressão!

  Parabéns a todos os envolvidos nesse trabalho! A coleção de Filosofia Clínica, parceria da Casa da Filosofia Clínica com a Editora Vozes, concede a obra do Prof. Dr. Miguel Angelo Caruzo, um justo reconhecimento (pela primeira reimpressão) ao seu livro, em menos de um ano após o lançamento! Hoje já são mais de 1.000 exemplares distribuídos no Brasil e exterior. Gratidão a todos os envolvidos com mais esse projeto de excelência da Casa da Filosofia Clínica. Parabéns ao Prof. Dr. Miguel Angelo Caruzo, pelo sucesso de sua primeira obra na coleção! Hélio Strassburger   Coordenador da Coleção   

Interseções de Estruturas de Pensamento – Uma Abordagem Possível***

Nossa maneira de ser, estar e agir dialoga com as vizinhanças. É provável que parcelas das percepções que temos sobre nós mesmos, os outros e o mundo brotem do impacto que o meio exerce em nossas vidas. As relações que travamos colaboram com a formatação do nosso olhar, ampliando-o ou reduzindo-o, nos deixando em posições mais ou menos confortáveis nas interações. Aí se insere o poder das referências que norteiam e justificam parte de nossas escolhas.   Em Filosofia Clínica as referências que inspiram nossos processos individuais, pela atração ou repulsão, são acolhidas no tópico Interseções de Estruturas de Pensamento (T28), que nos remete as associações entre elas. Posterior à pessoa, a Estrutura de Pensamento (EP) é o modo próprio do indivíduo se inserir existencialmente, inserção que passa pelo mergulho no coletivo. Assim, a qualidade das Interseções é ditada pela subjetividade de quem as vive, podendo produzir tanto bem quanto mal-estar. Familiares, amigos, parceiros, personal

Fenomenologia na Filosofia Clínica ***

Algumas perspectivas psicológicas se denominam ou têm no nome a palavra fenomenologia ou fenomenológica. No vídeo sobre psicologia fenomenológica com prof. Tommy Goto (https://www.youtube.com/watch?v=_RR9dHtF3e4&t=196s ) assumindo que a psicologia fenomenológica tem Edmund Husserl como fundamento da fenomenologia, pergunta-se onde está a fenomenologia nas abordagens psicológicas, pois “[..] se parte de pressupostos não pode ser o método fenomenológico, porque o método fenomenológico, de cara, já tem que eliminar os pressupostos. Então, se já tem uma prática psicológica que já considera esse pressuposto, então não pode ser método fenomenológico. Afinal de contas, então, o que é a psicologia fenomenológica”? O problema levantado por este professor de psicologia aparece porque a psicologia quis colocar a fenomenologia enquanto método terapêutico ou inserida dentro da metodologia terapêutica já estabelecida pela psicologia. A psicologia tenta usar da fenomenologia como método ou ap

Visitas