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Postagens

Literatura - na vida e na clínica*

Relação continuada que sobrevoa ideias complexas e aterrissa em sensações, a nossa e a dos livros. Quem já não capturou ou se deixou capturar pelas emoções, até dos jargões neles contidos. Galeano, no enfrentar silêncios para recuperar o não dito, é danado. Ele nos faz reverberar em outro plano, flexibiliza o fadado. Momento do devaneio poético, diria Bachelard. De tanto concentrar para ordenar imagens - como plantas, necessitam de terra e de céu - o imagético enlaça o simbólico e encontra novos imaginários. Jung, Campbell... O escarcéu. Utopia... Por intermédio dos livros exercitamos maneira nata, em seus mais diversos gêneros, de enxergar a nós mesmos e até manejar circunstância que mata. Distopia... As pessoas no Pessoa acordam outras em nós. Qual a sintonia... Termos agendados no intelecto partejando ideias... Ressignifica e marca autogenia. Navegar Camões nos arrebata. Ora pela tormenta que clama por sonhos. Ora pela calmaria que suspende a vida que a nós se ata. Clarice é seca pa...

Quase certeza*

Desde que me lembro por gente, tentei fazer as coisas para agradar aos outros, queria que todos gostassem de mim. Cumpria aquilo que a cultura pregava como certo. Naquela época, a maneira digna e decente de se viver incluía obediência, perfeição, honestidade, estudo, trabalho, sucesso. Precisava provar para a família e a sociedade o meu valor, então segui todas as regras ao pé da letra. Nunca perdi o ano na escola, obedeci e respeitei meus pais e professores, fiz faculdade de Medicina, arranjei um emprego, casei no cartório e sinagoga, tive um filho. Sabe aquela propaganda de margarina com a família perfeita? Era mais ou menos assim, só faltou o cachorro correndo pelo jardim. O tempo passou voando, como se minha vida estivesse rodando por uma esteira rolante acelerada. Nem todas minhas escolhas foram minhas. Eu era ator de um roteiro planejado para mim e nem me dava conta. Mesmo assim eu gostava e me sentia bem. Recebia aplausos em todos os palcos. Não sei precisar quando nem como, mas...

Recomeços*

Desbravo caminhos que em minha alma acordam com os primeiros raios do sol. No caminho da vida peregrino sem cessar. Contemplo as tardes com saudades das manhãs. O fruto doce das alegrias se mistura ao verde das esperanças. Em cada canto um novo canto que na melodia da alma se faz sinfonia no silêncio dos meus tantos cantos. Alma peregrina que encontra nos portos seguros os mais belos horizontes. Assim é a vida... Um eterno amanhecer que nas tardes de outono sonham com as primaveras que hão de vir. No passado de pretéritos os amores sempre novos com saudades do passado. Sempre caminhar, se perdendo nos encontros e encontrando-se nas perdas. Viver assim como o caboclo que no chão lavra a terra de certezas da chuva sempre incerta. Olhar sem desanimar, e caminhar rumo ao meu avesso que tece esperanças com as estrelas que anunciam o presente das estações. Trilhar... a vida sem medo e mesmo com medo arriscar... Perder-se... Encontrar-se... E perder-se novamente... O que de mim não sei a vida...

Startups da Alma*

“Dedicatória: Me ame, ame meu guarda-chuva.”                          James Joyce   Nota significativa para quem se sente feliz no seu canto, para quem tem um refúgio para a alma, para suas incongruentes manias de viver, de poder se sentir bem num canto, mesmo que seja na parte mínima de um lugar pequeno chamado casa. Um lugar que se transforma em espaço infinito, onde se pode sentir a liberdade de estar só. A tarde que esfria, o sol recolhe o calor externo, sozinho se pode vislumbrar a solidão do seu lado mais poético, às vezes assusta o instante em que aparece na casa do seu Ser. Parecendo filme, livro, uma viagem que se torna tão real que já não distingue se um dia saiu de seu canto do pensar sobre algo, ou se realmente existe base para conectar a leitura de um livro, a audição de uma música com o filme que está na memória e foi assistido há um tempo, e se tudo isso faz parte da realidade ou é mera participação do ...

O que a Filosofia Clínica, não é?***

  Não tendo pretensão de definir um conceito sobre o que é a Filosofia Clínica (F.C.), mas antes convidá-lo a refletirmos sobre alguns aspectos daquilo que ela não é, me apresento: Sou Ancile, habilitada à pesquisa em F.C. e Graduada em Psicologia. Atuo com psicoterapia de inspiração existencialista há 12 anos. Se no Novo Paradigma ainda me sinto como uma criança sendo alfabetizada, na área psi posso dizer que já concluí as “séries iniciais” e me sinto segura para propor a tentativa de traçarmos um paralelo no sentido de ressaltar as diferenças essenciais de cada área. Trago algumas características metodológicas das 3 grandes áreas psis , Psicologia, Psicanálise e Psiquiatria, suas diferenças entre si e em relação à Filosofia Clínica. Começando pela Psicologia, fundada em 1879 por Wilhelm Wundt (1832-1920), a partir da criação do Laboratório de Psicologia Experimental na Universidade de Leipzig, Alemanha. São muitas escolas de pensamento desde então, com variadas teorias que bus...

Apontamentos sobre incompletude existencial*

Eu entendo bem a dificuldade de percebermos os nossos próprios pontos cegos. A ignorância, essa nossa companheira inseparável, é difícil, porque esconde-se em nossa sombra: como dizia Descartes, todo mundo (inclusive este que vos escreve) sempre se considera perfeitamente dotado de bom-senso e da capacidade de perceber os próprios enganos. Mas a confiança na clareza da nossa razão não é particularmente racional. * * * Amigos, eu vivo da palavra falada e escrita. É curioso: no momento em que estou trabalhando, as frases e os parágrafos me parecem muito bem construídos. Reviso uma, duas, três vezes o conjunto. E fico satisfeito. Dez minutos depois leio novamente o texto. Um pouco constrangido, começo a notar as repetições, as cacofonias, as falhas de pontuação, as proposições ambíguas. Corrijo. E novamente fico satisfeito. Uma ou duas horas mais tarde, retorno a ele - e embaraço-me ao descobrir novos erros e omissões. Reescrevo algumas passagens, elimino outras. Satisfeito mais uma vez. ...

Uma perspectiva prática da recíproca*

A metodologia da Filosofia Clínica contempla elementos que constituem a estrutura de pensamento e os modos de agir de cada pessoa. Alguns elementos, como a inversão e a recíproca, podem estar tanto na espacialidade intelectiva quanto nas ações do indivíduo. Simplificadamente, inversão é o movimento de trazer o outro ao seu próprio mundo, enquanto a recíproca é ir em direção ao outro. No espaço terapêutico, a recíproca pode fazer parte da qualificação da relação terapeuta/partilhante, sendo utilizada pelo terapeuta que escuta, acolhe e, principalmente, se isenta de suas perspectivas do mundo e das relações diante do discurso existencial do partilhante. Assim, considera essencialmente o outro para possibilitar o espaço da construção compartilhada. Em um esboço preliminar, através do discurso existencial do partilhante, a recíproca pode aparecer como tópico importante da estrutura de pensamento. Com a evolução do tempo terapêutico, através do acesso à historicidade, às circunstâncias, à l...

A Escuta compreensiva na clínica filosófica*

Ao iniciar essa análise faço um convite a você, caro leitor. Partirmos da noção de singularidade como pressuposto para que possamos, juntos, seguir no progresso deste estudo.  De maneira breve a singularidade, na Filosofia Clínica, é um conjunto de fenômenos que compõem o partilhante e sua medida de relação e interseção com o mundo interno, externo e, também, com outras pessoas. O esperado é que o Filósofo Clínico mantenha- se despido de seu juízo e valor pessoal. Por sua vez, essa atitude propicia um ambiente onde aquele que compartilha sua história pode ser conhecido através de seus próprios critérios. A escuta realizada na prática terapêutica prevê a literalidade, ou seja, aquilo que é dito deve ser compreendido e não interpretado. O ser humano singular é o mar por onde o filósofo clínico navega. É dentro das condições apresentadas por este mar que se manifesta a Filosofia Clínica. Articulando os elementos citados acima cria-se uma atmosfera que protege o partilhante. Constitui-...

Sobre Exames Categoriais*

Talvez seja importante dizer que em Filosofia Clínica partimos de um não saber, causa de incômodo porque os princípios de verdade que regem as epistemologias vigentes e aceitas em nossa sociedade estão relacionados ao saber-poder, mas isso fica como provocação e assunto para um próximo texto. Agora, partindo de um não saber, recebemos a pessoa em clínica e com isso passamos a construir juntas os conhecimentos singulares àquela existência, a aprender, ela e eu, sobre ela. Antropologia e alquimia acontecem no decorrer dos encontros. Uma das primeiras coisas que Lúcio Packter relata em seus estudos no “Caderno A” é que, a partir dos exames categoriais, o filósofo clínico vislumbra “uma representação para si mesmo da representação do outro”. Motivo pelo qual em Filosofia Clínica trabalhamos com aproximações, ou seja, podemos conhecer a pessoa de modo aproximado. Também é fundamental o acolhimento de quem nos procura e um zelo pela interseção entre filósofo clínico e partilhante. Os exames ...

O Instante Aprendiz***

“Todas as coisas são de tal natureza que, quanto mais abundante é a dose de loucura que encerram, tanto maior é o bem que proporcionam aos mortais”                                                                  Erasmo de Rotterdam   Ao esboçar apontamentos sobre uma lógica da loucura, um viés de absurdidade se desvela em estilhaços de múltiplas faces. Fronteira onde a normalidade se reconhece nos seus paradoxos. Uma das características da expressividade delirante é ensimesmar-se em desacordo com o mundo ao seu redor. Cria dialetos de difícil acesso para proteger suas versões de maior intimidade. O papel da Filosofia Clínica na interseção com a crise imediata também é apresentação ...

Jornada Protagonista*

A palavra é um manifesto da razão e da denúncia, toda vez que as nossas impressões transbordam e expressam numa intensidade de duração e alcance capaz de tocar nas percepções alheias. Na razão podemos justificar a temporalidade, e o quanto, as vezes, percebemos pueril e passageiro os sabores e dissabores da vida, sempre tão pertinentes para nos ensinar que o ser só pode mesmo transgredir ou transcender. E, cabe a cada um de nós, a escolha de ser mais um cativo ou mais um protagonista, nessa jornada tão própria de existir sentindo tanto... Sentir muito é o que faz despertar a possibilidade de perceber mais dia menos dia, que tanto a liberdade quanto a prisão são decisões desafiadoras, que sempre tendem na direção de um desfecho capaz de nos oportunizar sermos senhores das nossas próprias escolhas, enquanto, necessariamente, nos lançamos como reféns das consequências. Curiosamente, quando uma sensação de felicidade precisa ser justificada ou anunciada já se trata de uma ilusão, pois a su...

Inquietude Investigativa*

Na filosofia clínica, há quem aprenda o método e o utilize no consultório e quem, além de realizar os atendimentos, também continue a ensinar, pesquisar, aprofundar e questionar a fundamentação e a prática.   Assim, os formados seguem acompanhando os resultados das pesquisas e os adaptam ao seu trabalho no consultório. Seu tempo é mais empenhado em fazer o atendimento da melhor maneira possível com os recursos bibliográficos e audiovisuais ao seu alcance. Com isso, podem se tornar excelentes profissionais da área, exercendo seu trabalho como filósofos clínicos. Esse é o caso da maioria daqueles que concluem a formação. O segundo grupo mencionado é constituído de uma minoria. São filósofos clínicos que não se contentam em receber o conteúdo apresentado por quem os ensinou. Antes, continuam suas investigações em prol de ter um método cada vez mais aprimorado. Por isso, pesquisam as bibliografias, reveem os fundamentos, questionam seus pares, propõem novos caminhos etc. Esse grup...

Âncoras*

'Navegar é preciso; viver não é preciso'              (Fernando Pessoa)   Navegar e viver costumam ser desafios ao sabor dos ventos e das marés, como uma flecha lançada ao vento, sem rumo nem piedade, sem desculpas, sem destino, talvez só aquele que obstinadamente julgamos traçar. Não há garantias e pode não haver volta... e a cada movimento, entropicamente, detonamos o estoque de energia que nos foi reservado, sem nos darmos conta de que alguma coisa se esvaiu, de que algo precioso transmutou. Sabemos que emergimos do ventre e que vamos findar no ocaso da existência. O rio que corre entre essas duas margens, que por alguma razão somos impelidos a saltar, é que costuma fazer a diferença. Navegar é tão preciso quanto viver e viver é tão impreciso quanto navegar... uns se debatem sem alcançar suas ilhas distantes; outros buscam âncoras que os salvem daquilo que nem mesmo suspeitam, pois para ter qualquer migalha de conhecimento, virtude, experiência...

O ser humano é a medida de todas as coisas*

Filosoficamente, esta frase foi combatida por Sócrates no diálogo Teeteto, que lida com o conhecimento ou aquilo que é conhecimento, que em filosofia chamamos de epistemologia, ou seja, o estudo sobre o que é o conhecimento e como justificá-lo. Fundamentalmente, conhecimento – episteme – é diferente de opinião – doksa. Para que possa haver conhecimento, como dirá Aristóteles anos mais tarde depois de Sócrates, a investigação há que se fundar em algo que seja universal e firme, pois não se faz ciência de opiniões e de casos particulares ou singulares. Pois um dos aspectos fundamentais do conhecimento é sua comunicabilidade. Se aquilo do qual temos ciência, se desvanece em minha própria subjetividade ou se desfaz logo depois de eu ter tido “contato” com ele, então é incomunicável, não replicável e influenciado pelas contingências ou da minha subjetividade ou das circunstâncias ou do próprio acaso. Por isso, neste diálogo, Sócrates combate esta frase de Protágoras, o maior sofista conheci...

Poéticas do Amanhã*

“Antes eu era transparente, agora sou cheio de cores.”                      Arthur Bispo do Rosário   A inédita conversação nos recantos da palavra delirante possui características de anúncio. Sua perspectiva de grande abertura oferece derivações a insinuar vontades e perseguir refúgios existenciais. Uma filosofia dos devaneios sugere novas menções. O hospício cotidiano, esse lugar legitimado por força de lei, atualiza seu discurso em paradoxos com olhares desfocados. Enquanto a enfermaria multiplica a fenomenologia dos delírios, o lugar reinventa a camisa de força da normalidade e persegue os poetas enlouquecidos pelo não-dizer. No caso da vírgula contida nesses atalhos, dizeres desconsiderados prosseguem em rituais de ilusão. Sua estrutura significante faz referência aos incríveis vislumbres, numa palavraria sem sentido aos endereços já superados. A condição de miserabilidade físic...