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Postagens

Poéticas do Indizível*

(...) Graças as sombras, a região intermediária que separa o homem e o mundo é uma região plena, de uma plenitude de densidade ligeira. Essa região intermediária amortece a dialética do ser e do não ser".                                                                     Gaston Bachelard                                                    Uma crença muito antiga aprecia atualizar-se desse enigmático hoje que um dia foi amanhã. Poderia ser o pretérito imperfeito de uma busca ou aquele quase nada onde tudo acontece. Atualização de um dialeto nem sempre dizível, a se alimentar nas fontes inenarráveis, nos p...

Percepções em autogenia***

“... que são portas e grades ao viajante que aprendeu a bater asas e conheceu a arte de ultrapassar paredes?”                                        Hélio Strassburger O processo de libertação existencial que, não raras vezes, acontece em clínica, desencadeia uma série de eventos, os quais atingem tanto o partilhante quanto as pessoas de seu convívio social. O surgimento desse aspecto de revolução pessoal, pode ultrapassar fronteiras e ressoar em seu entorno, causando efeitos de autogenia coletiva, afastamentos, reconciliações, novas relações... Vou falar um pouco sobre algumas percepções nesse sentido. É possível que o trabalho em clínica filosófica desencadeie desajustes autogênicos, ou seja, a pessoa muda e o entorno das relações perde sentido, completa ou parcialmente. O partilhante pode sentir-se sozinho, não conseguir mais conversar ou estabelecer conexões com pessoas e coisas...

O escritor, o texto e a IA*

  Hoje conversei com um amigo que me ajudará com o marketing digital. Ele me perguntou se escrevo com a IA. E riu quando respondi-lhe: "é evidente que não". Diante de sua surpresa - afinal, "todo mundo hoje escreve com IA" -, expliquei: a relação do escritor com o texto é diferente daquela do publicitário. Enquanto este visa ao texto acabado e eficaz, aquele define-se existencialmente no próprio ato da escrita. É como um maratonista. Há muitas maneiras rápidas, confortáveis e eficientes de chegar ao final dos tais quarenta e dois quilômetros. Mas se o maratonista tomasse um ônibus, não seria maratonista. Isso porque ele não corre para chegar a algum destino; ele corre pela própria corrida - pelo desconforto, pela exaustão, e pelo prazer supremo que daí emerge. Assim é com o escritor: ninguém é escritor por simplesmente entregar um texto; o escritor é aquele que, consciente de seu estilo, sofre e goza com a escolha de cada palavra, com a construção da cadên...

Normal e patológico*

Filosofia Clínica - O ensino da filosofia clínica começou há trinta anos. Inicialmente, Lúcio Packter lecionou em Porto Alegre, no Instituto Packter. Paulatinamente, por todo o país. Hélio Strassburger, junto a Lúcio, se encaminhou para outros estados brasileiros para ensinar essa nova abordagem terapêutica. Além de diretor por mais de uma década do Instituto Packter, Strassburger também ampliou os horizontes de possibilidade de atendimento desse método para hospitais psiquiátricos no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, mostrando que os filósofos clínicos são convidados a pensar o método, a aprofundar e a atualizar seus fundamentos teóricos e práticos. ******** Antigos e novos leitores - Alguém que lê há anos pode oferecer dicas valiosas para novos leitores. Mas, é preciso ter cuidado ao ouvir essas sugestões. A experiência de quem dialoga com livros por anos ou décadas permite análises profundas sobre as obras, estabelecendo diálogos com contextos, épocas, correntes de p...

Jornada Protagonista*

A palavra é um manifesto da razão e da denúncia, toda vez que as nossas impressões transbordam e expressam numa intensidade de duração e alcance capaz de tocar nas percepções alheias. Na razão podemos justificar a temporalidade, e o quanto, as vezes, percebemos pueril e passageiro os sabores e dissabores da vida, sempre tão pertinentes para nos ensinar que o ser só pode mesmo transgredir ou transcender. E, cabe a cada um de nós, a escolha de ser mais um cativo ou mais um protagonista, nessa jornada tão própria de existir sentindo tanto... Sentir muito é o que faz despertar a possibilidade de perceber mais dia menos dia, que tanto a liberdade quanto a prisão são decisões desafiadoras, que sempre tendem na direção de um desfecho capaz de nos oportunizar sermos senhores das nossas próprias escolhas, enquanto, necessariamente, nos lançamos como reféns das consequências. Curiosamente, quando uma sensação de felicidade precisa ser justificada ou anunciada já se trata de uma ilusão, pois a su...

A escuta compreensiva na clínica filosófica*

Ao iniciar essa análise faço um convite a você, caro leitor. Partirmos da noção de singularidade como pressuposto para que possamos, juntos, seguir no progresso deste estudo. De maneira breve a singularidade, na Filosofia Clínica, é um conjunto de fenômenos que compõem o partilhante e sua medida de relação e interseção com o mundo interno, externo e, também, com outras pessoas. O esperado é que o Filósofo Clínico mantenha- se despido de seu juízo e valor pessoal. Por sua vez, essa atitude propicia um ambiente onde aquele que compartilha sua história pode ser conhecido através de seus próprios critérios. A escuta realizada na prática terapêutica prevê a literalidade, ou seja, aquilo que é dito deve ser compreendido e não interpretado. O ser humano singular é o mar por onde o filósofo clínico navega. É dentro das condições apresentadas por este mar que se manifesta a Filosofia Clínica. Articulando os elementos citados acima cria-se uma atmosfera que protege o partilhante. Constitui-se o ...

Âncoras*

'Navegar é preciso; viver não é preciso'              (Fernando Pessoa)   Navegar e viver costumam ser desafios ao sabor dos ventos e das marés, como uma flecha lançada ao vento, sem rumo nem piedade, sem desculpas, sem destino, talvez só aquele que obstinadamente julgamos traçar. Não há garantias e pode não haver volta... e a cada movimento, entropicamente, detonamos o estoque de energia que nos foi reservado, sem nos darmos conta de que alguma coisa se esvaiu, de que algo precioso transmutou. Sabemos que emergimos do ventre e que vamos findar no ocaso da existência. O rio que corre entre essas duas margens, que por alguma razão somos impelidos a saltar, é que costuma fazer a diferença. Navegar é tão preciso quanto viver e viver é tão impreciso quanto navegar... uns se debatem sem alcançar suas ilhas distantes; outros buscam âncoras que os salvem daquilo que nem mesmo suspeitam, pois para ter qualquer migalha de conhecimento, virtude, experiência...

El instante aprendiz***

* Traducción:    Prof. Dra. Arantxa Serantes (La Coruña/Espanha) Al esbozar apuntes sobre una lógica de la locura, un envés del absurdo se desvela en astillas de múltiples caras. Frontera donde la normalidad se reconoce en sus paradojas. Una de las características de la expresividad delirante es ensimismarse en desacuerdo con el mundo alrededor. Crea dialectos de difícil acceso para proteger sus versiones de mayor intimidad. El papel de la Filosofía Clínica en la intersección con la crisis inmediata también es presentación indeterminada en un proceso caracterizado por la exageración de la manifestación del que comparte. Un no saber vehicula provisionales verdades en el compartir deconstructivo de las sesiones. Representaciones existenciales difusas se alternan en narrativas del tiempo de la persona. El lenguaje de la locura se constituye en un conjunto de convivencias estúpidas. El punto de partida es la extraordinaria lengua de la persona estructurada en alguna forma caótica....

Expressividade*

Não! Não renuncio à vida. Não vou seguir atirando na sarjeta cada sagrado segundo desta breve viagem, nas mãos da racionalidade, civismo e bom senso excessivos... O que de selvagem me restou travestiu-se na fôrma da ignomínia.   Todavia, o fogo que arde no âmago das profundezas da vera essência, derrete as tolices formais e devolve a verdade imprecisa, pura, inocente. E só assim há coerência; o que não há no medo, nem na medida. O que não há na causa, nem no efeito. O que não há no tempo, nem no espaço. Coisas essas, que somente existem na opressão em que nos afogamos por nossos próprios meios. E tampouco neste asqueroso âmbito temos qualquer mérito ou recompensa. Escravidão, escravidão! Cegueira, cegueira, coletiva cegueira!!! Se liberdade não há, que ao menos não haja o grilhão. Gênero? Instituições? Moral? Formação? Modelos de aparência e conduta? A quantas chaves mais deveríamos nos trancafiar num cotidiano oco, padrão, robótico, mecânico, eletrônico, com o controle remoto...

Relógio do Ser*

“Deixar de viver fragmentariamente.”   E. M. Forster   Andar, caminhar nas nuvens, deslizando memórias no tempo que desloca a imagem entre o olho e a velocidade dos objetos em movimento, naquilo que tem de mais sagrado, a capacidade de pensar, sentindo o líquido dos sonhos, adiar os acontecimentos no relógio que desaparece diante da relação do tempo com o viver do absolutamente – nada mais para viver – tudo tão perdido, sintaxe dos sentimentos, uma construção de aromas, sabor da comida, gole do vinho, e a sensação de ter vivido tempo suficiente para não lembrar do que já foi vivido. O resgate da memória está nesse acolhimento de histórias, de leituras, longas horas na água, observar a vida na profundeza das águas do imaginário, e o relógio quebrado no movimento das braceadas, a respiração no sopro de voz no inaudível, retrato colado na alma, sem tempo, a busca de uma compreensão da leitura, um desejo de voltar para um lugar em companhia do tempo sobreposto sobre o Nada. O sopr...

Subjuntivos*

Talvez esse imenso lugar nativo ficasse inexplorado, não fora o movimento desconcertante a acessar as inéditas regiões. Essa aptidão de estranhamento, tão desmerecida, aprecia desnudar o espaço novo diante do olhar, interseção limiar com as demais teias discursivas. Através do viés desconsiderado é possível apreender e dialogar com a pluralidade transgressora das fronteiras conhecidas. Ao fazer possível o impossível se pode vislumbrar a ótica selvagem, um pouco antes de ser cooptada pelo saber instituído.   A cogitação sobre a origem dessa matriz já contém, em si mesma, a multiplicidade de versões. As lógicas da incerteza elaboram seus vocabulários brincando com os vestígios da irrealidade. O devir instintivo ensaia relatividades ao querer mostrar paradoxos, alternâncias, dialetos para se entender ou sentir que a perfeição de toda imperfeição nem sempre vai ser explicável.   Sua opinião escolhe desmerecer todo beco sem saída. Seu saber especulativo, recheado de incertezas, pro...

Atípicos*

A crescente onda de diagnósticos e da busca pela conscientização da ideia da presença de inúmeros "atípicos" na sociedade tem mostrado algo a se refletir: talvez, ninguém seja realmente "normal". Os diagnósticos de "transtornos", "síndromes" ou "doenças" mentais ou físicas têm servido para justificar a dificuldade de pessoas para se "enquadrar" entre os "normais". O problema consiste em justamente não haver a percepção de que essa "normalidade" não está em lugar ou em pessoa nenhuma. Trata-se de critérios abstratos, noções ideais sobre características de alguém "normal". Se quase metade da população possui alguma característica que a distingue desse ideal de normalidade, não seriam esses aspectos "normais" na humanidade? Não no sentido de uma normalidade "etérea", descolada da vida. Trata-se, antes, da constatação de que, no fundo (e nem tão fundo assim), cada pessoa é singular...

Aberturas existenciais***

Os processos de autogenia costumam revelar reorientação de rotas, reinvenção de rumos, abertura de caminhos. Em clínica, algumas vezes a pessoa inicia a terapia já nesse estágio de transformação pessoal. São tempos de travessia, onde pode ocorrer de a partilhante vivenciar suas experiências novas, pelo viés discursivo antigo e pelos princípios de verdade vigentes em seu grupo de convivência. Instantes que podem levar a pessoa a classificar suas novidades em discursos que apontam estranhamentos para si ou para os outros, tais como: "eu pareço uma adolescente"; "já me disseram que eu pareço uma personagem, que não vou sustentar isso por muito tempo", e, talvez a partilhante esteja apenas passando por um momento de abertura existencial a ressoar em ressignificação pessoal, familiar, de trabalho, novas buscas, experimentando desejos sexuais, atitudes de empoderamento frente aos que lhe exerceram poder ao longo da vida... Então, ainda que ela esteja saboreando e reco...

Doença*

Em sentido direto, o conceito de doença não pode ser usado na pedagogia. Um pedagogo ou pedagoga não pode considerar um aluno ou aluna “doente”. Um advogado não usa o conceito de doença em sua linguagem de trabalho para definir seus clientes. Um engenheiro não se dirige a uma estrutura material de uma construção como “doente”. Um economista não pode avaliar um sistema econômico de “doente”. Um filósofo não usa este termo como avaliação moral de um sistema político ou moral. A sociologia não pode usar como se fosse de seu vocabulário técnico a palavra “doente”. Um matemático não avalia uma equação através do conceito de “doença”. Enfim, o termo “doença” é estritamente médico e todos os seus usos fora deste âmbito são metafóricos. Leonidas Hegenberg, em seu livro “Doença: um estudo filosófico”, escreve que medicina designa a ciência e a arte de diagnosticar, tratar, curar e prevenir a doença, aliviando  a dor e melhorando ou preservando a saúde; e também, o ramo de tal ciência ou art...