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Quase certeza*

Desde que me lembro por gente, tentei fazer as coisas para agradar aos outros, queria que todos gostassem de mim. Cumpria aquilo que a cultura pregava como certo. Naquela época, a maneira digna e decente de se viver incluía obediência, perfeição, honestidade, estudo, trabalho, sucesso. Precisava provar para a família e a sociedade o meu valor, então segui todas as regras ao pé da letra. Nunca perdi o ano na escola, obedeci e respeitei meus pais e professores, fiz faculdade de Medicina, arranjei um emprego, casei no cartório e sinagoga, tive um filho. Sabe aquela propaganda de margarina com a família perfeita? Era mais ou menos assim, só faltou o cachorro correndo pelo jardim. O tempo passou voando, como se minha vida estivesse rodando por uma esteira rolante acelerada. Nem todas minhas escolhas foram minhas. Eu era ator de um roteiro planejado para mim e nem me dava conta. Mesmo assim eu gostava e me sentia bem. Recebia aplausos em todos os palcos. Não sei precisar quando nem com...
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Cascas de Sonho*

“Nossos sentidos se desenvolveram de maneira diferente, e por isso precisamos usar a imaginação para ter uma vaga ideia do que acontece dentro das árvores.”                            Peter Wohlleben     O coração teme, sobreleva-se, alcança a dor do pensamento. O exercício de dar vida e sentido às frases é a metáfora movendo o fora do lugar. A linguagem que gagueja, cresce em momentos de perplexidade, nos momentos da solidão se põe a fazer versos, à deriva. Cria das histórias imaginárias, teorias no caminho, no andar em direção ao lado de lá, é este homem em páginas amarelecidas, em voz metalizada nas crostas de uma árvore secular. O melhor de tudo é quando o sonho é capturado logo no momento do acordar, anotações salvas, o sonho ganha uma vida. Meandros do inconsciente, tão real, um tipo de retomada de roteiro perdido. A adolescência está por trás...

Um breve relato terapêutico***

Em algum momento da minha vida as coisas não caminhavam bem. Os assuntos imediatos eram, principalmente, os conflitos éticos que rolavam no meu trabalho, relacionados aos colegas e clientes, as dificuldades de aceitar o mundo como ele é, e entender para onde eu iria me direcionar dalí pra diante. Pois bem, fui pra terapia. Meu plano de saúde dispõe de psicólogo. E assim, fui buscar ajuda. Era uma boa psicóloga e tínhamos uma interseção que habilitava o trabalho, embora desde o início houvesse alguns conflitos na nossa troca, pois era perceptível um ponto de vista divergente sobre questões que pra mim eram fundamentais. Trabalhando minha flexibilidade em relação a isso, pude percorrer um bom caminho por algumas sessões. Mas confesso que desde o início as consultas eram, em sua maioria, difíceis. Não havia um zelo com assuntos desconfortáveis, e o tratamento era aplicado de maneira repentina, gerando dificuldade de absorver as questões que acompanhavam as sessões e o tratamento dado ...

O primeiro passo para compreender a Filosofia Clínica*

O título ideal para um texto desse tipo sobre filosofia clínica, deveria ser: Abordagem do que não é possível ser abordado, guia para um texto que não deveria ser escrito. Controverso, não? Mas, nas linhas seguintes, explicitaremos o porquê que um título assim seria justificável. Para esclarecer nossa proposta, vamos nos remeter a Sócrates (469 a.C. – 399 a. C.) um ateniense que mudou o foco da filosofia Ocidental. Longe de nos determos em longas linhas acerca da história da filosofia, abordaremos apenas alguns traços desse pensador para servir ao fio condutor de nossa reflexão. Antes de Sócrates, havia pensadores denominados filósofos da natureza, ou seja, suas reflexões estavam voltadas para o todo, o cosmos, a ordem, a origem de tudo o que é. Depois desses pensadores, surge Sócrates inaugurando o pensamento mais antropológico. Ele não escreveu nada, tudo o que sabemos dele foi escrito por seus seguidores, como Platão, ou por opositores, como Aristófanes. Platão nos mostra que seu me...

Ponto Cego***

O conceito de paradigma é determinante nas concepções de mundos como vontade e representação, tanto para uma perspectiva subjetivista quanto objetivista. A história da ciência e do pensamento humano é marcada por contínuas rupturas paradigmáticas.  Teorias e crenças antes consideradas inquestionáveis foram por diversas vezes descartadas conforme descobertas, novos dados e perspectivas vieram à tona. Esse processo recorrente nem sempre ocorre sem resistência ou violência. Apegos a paradigmas estabelecidos, o que não é raro, pode criar um ponto cego epistêmico onde a própria estrutura de conhecimento em voga impede a percepção das suas limitações. Os paradigmas são estruturas fundamentais que moldam a forma como interpretamos o mundo. Segundo Morin (2005, p. 128), "um paradigma impõe seleção e organização do conhecimento, mas também exclui o que não se encaixa". Essa seleção pode se tornar um viés cognitivo ao restringir a percepção exclusivamente ao que reforça o paradigma vig...

A musa invisível***

  O tempo é uma das cinco categorias que compõem a primeira etapa do método. Alguns partilhantes possuem uma forte relação com essa categoria, que aparece sessão após sessão. Uns mais pautados pelo tempo objetivo, cronológico, outros pelo tempo subjetivo em uma relação muito íntima e específica com ela. Podem aparecer, por exemplo, dificuldades em cumprir horários, compromissos, gerando em outras pessoas de convívio social, interpretações, desconfortos existenciais, significados sobre a incapacidade de adequar-se ao padrão exigido. Algumas almas simplesmente não nasceram para o tempo cronológico. Em alguns casos, a obrigação de enquadrar-se nele anula inclinações pessoais, sonhos, buscas. Ao passo que, compreender sua relação com essa categoria e respeitar seu tempo subjetivo, possibilita que a pessoa volte a respirar, criar, sentir-se adequada em algum lugar dentro de si mesma – observe como isso interfere na categoria lugar e padrão autogênico – por isso, falamos em adequações ...

Expressividade*

Não! Não renuncio à vida. Não vou seguir atirando na sarjeta cada sagrado segundo desta breve viagem, nas mãos da racionalidade, civismo e bom senso excessivos... O que de selvagem me restou travestiu-se na fôrma da ignomínia. Todavia, o fogo que arde no âmago das profundezas da vera essência, derrete as tolices formais e devolve a verdade imprecisa, pura, inocente. E só assim há coerência; o que não há no medo, nem na medida. O que não há na causa, nem no efeito. O que não há no tempo, nem no espaço. Coisas essas, que somente existem na opressão em que nos afogamos por nossos próprios meios. E tampouco neste asqueroso âmbito temos qualquer mérito ou recompensa. Escravidão, escravidão! Cegueira, cegueira, coletiva cegueira!!! Se liberdade não há, que ao menos não haja o grilhão. Gênero? Instituições? Moral? Formação? Modelos de aparência e conduta? A quantas chaves mais deveríamos nos trancafiar num cotidiano oco, padrão, robótico, mecânico, eletrônico, com o controle remoto nas mãos d...

O escritor, o texto e a IA*

Hoje conversei com um amigo que me ajudará com o marketing digital. Ele me perguntou se escrevo com a IA. E riu quando respondi-lhe: "é evidente que não". Diante de sua surpresa - afinal, "todo mundo hoje escreve com IA" -, expliquei: a relação do escritor com o texto é diferente daquela do publicitário. Enquanto este visa ao texto acabado e eficaz, aquele define-se existencialmente no próprio ato da escrita. É como um maratonista. Há muitas maneiras rápidas, confortáveis e eficientes de chegar ao final dos tais quarenta e dois quilômetros. Mas se o maratonista tomasse um ônibus, não seria maratonista. Isso porque ele não corre para chegar a algum destino; ele corre pela própria corrida - pelo desconforto, pela exaustão, e pelo prazer supremo que daí emerge. Assim é com o escritor: ninguém é escritor por simplesmente entregar um texto; o escritor é aquele que, consciente de seu estilo, sofre e goza com a escolha de cada palavra, com a construção da cadência e do rit...

Fora de foco***

O filme   Desconstruindo Harry   é de 1997. Tem a duração de 1h35min. Escrito, dirigido, representado por Woody Allen e convidados. A obra se aproxima da nova abordagem terapêutica da Filosofia Clínica, especialmente com roteiros de autogenia, espacialidade intelectiva, e outros. No entanto se distancia, quando o fenômeno humano singular é tratado como algo universal, coisificado, refém de tipologias, estereótipos, protocolos.        Um aspecto vinculado aos deslocamentos intelectivos, se refere a pluralidade de expressões, derivações, para integrar o roteiro, tendo por base uma só matriz descritiva. Em outras palavras, trata-se de textos dentro de um texto, num convite para o leitor/espectador acompanhar a interseção do centro com suas margens. Vivenciar as sensações que se oferecem na história. No mesmo sentido, um pouco antes de ir ao cinema, autor e obra se confundem em sua redação. Os personagens se mesclam na criatividade dos roteiros. O texto se asse...

Singularidade*

Para a Filosofia (obviamente alguns autores, isso não é uma aceitação geral), a singularidade é um exercício, pois nascemos particulares – somos parte de algum grupo, de alguma família, de uma cidade etc. – e tornamo-nos singulares, com o esforço de imprimir nossa personalidade única. Para alguns, somos universais desde que nascemos, pois fazemos parte do todo seja da humanidade, do universo, da ecologia etc. Em alguns casos, em uma Filosofia ontológica, nossa existência é única, porém atrelada a gêneros ou espécies. Tornamo-nos – seja o que for - comparando-nos com outros ou em hierarquia com outros gêneros ou espécies. A Filosofia Clínica tem o pressuposto da singularidade na abordagem com o fenômeno humano, mesmo que o próprio indivíduo que venha até um filósofo clínico não se considere singular. Alguns não querem ser vistos existencialmente como singulares, mas como existindo em grupos ou em conexão com particulares ou universais. Assim se efetivam existencialmente.  Para algun...

Startups da Alma*

“Dedicatória: Me ame, ame meu guarda-chuva.”                              James Joyce   Nota significativa para quem se sente feliz no seu canto, para quem tem um refúgio para a alma, para suas incongruentes manias de viver, de poder se sentir bem num canto, mesmo que seja na parte mínima de um lugar pequeno chamado casa. Um lugar que se transforma em espaço infinito, onde se pode sentir a liberdade de estar só. A tarde que esfria, o sol recolhe o calor externo, sozinho se pode vislumbrar a solidão do seu lado mais poético, às vezes assusta o instante em que aparece na casa do seu Ser. Parecendo filme, livro, uma viagem que se torna tão real que já não distingue se um dia saiu de seu canto do pensar sobre algo, ou se realmente existe base para conectar a leitura de um livro, a audição de uma música com o filme que está na memória e foi assistido há um tempo, e se tudo isso faz parte da realidade ou é mera pa...

Parâmetros de estudo***

Considerar a totalidade da estrutura de pensamento não significa o mesmo que conhecer tudo sobre o indivíduo. Tudo implica na noção de reconhecimento ou estudo de algo observável em repouso, um objeto inerte ou estático. Do não dotado da capacidade de transformação. Encontrar a singularidade é entender estruturalmente o “como” do partilhante “sendo” na efetivação – submodos – de sua organização interna – estrutura de pensamento – possibilitadas por seu horizonte existencial – exames categoriais. Dentre outros motivos, esse ladear inicia por um recorte chamado assunto imediato, pois antes de enxergar a estrutura interna e sua efetivação, a possibilidade de reconhecimento se dá a partir das categorias. É necessário entender a estrutura de pensamento relacionada aos demais elementos do método. Na terapia, a proposta é uma aproximação ao como a pessoa está e não a busca de definir quem ela é. Isso traz ao filósofo clínico o desígnio de nunca baixar a guarda na relação traçada entre assunto...

*Resenha de Ana Bia

  Resenha de Ana Bia para o site:   https://proximolivro.net/   - Pérolas Imperfeitas - A pontamentos Sobre as Lógicas do Improvável . Editora Sulina. Porto Alegre/RS. 2012.  A vida é uma dança imprevisível entre o que conhecemos e o que ousamos explorar. “Pérolas Imperfeitas: Apontamentos Sobre as Lógicas do Improvável”, de Hélio Strassburger, não se contenta em ser apenas uma leitura; é um convite a questionar as realidades que nos cercam. Com uma prosa ligeira e provocante, Strassburger oferece um vislumbre das complexidades do cotidiano, os fragmentos de beleza que só emergem na imperfeição. A obra se faz acompanhar de reflexões que transitam entre o inesperado e o banal, revelando que muitas vezes são as falhas que nos fazem humanos. Em suas páginas, você encontrará a essência das pepitas de sabedoria que surgem na adversidade e nos desafios diários. Ao longo de 142 páginas de puro deleite, Strassburger despiu-se de qualquer formalismo excessivo e, em v...