“Lembro-me, já nos
últimos tempos de sua estada conosco, de um conceito dessa natureza, que nem
chegou a ser mesmo um conceito, mas antes unicamente um olhar. Foi quando um
célebre historiador e crítico de arte, de renome europeu, anunciou uma
conferência na universidade local e logrei persuadir o Lobo da Estepe a que
fosse assistir a ela, embora não me demonstrasse nenhum prazer em ir. Fomos
juntos e nos sentamos um ao lado do outro no auditório. Quando o orador subiu a
tribuna e começou a elocução, decepcionou, pela maneira presumida e frívola de
seu aspecto, a muitos de seus ouvintes, que o haviam imaginado algo assim como
um profeta. E quando então começou a falar e, à guisa de introdução, endereçou
aos ouvintes palavras lisonjeiras, agradecendo-lhes por terem comparecido em
tão grande número, nesse exato momento o Lobo da Estepe me lançou um olhar
instantâneo, um olhar de crítica àquelas palavras e a toda a pessoa do
conferencista, oh!, um olhar inesquecível e tremendo, sobre cuja significação
poder-se-ia escrever um livro inteiro! O olhar não apenas criticava o orador e
destruía a celebridade daquele homem com sua ironia esmagadora embora delicada;
não, isso era o de menos. Havia naquele olhar um tanto mais de tristeza que de
ironia; era na verdade um olhar profundo e desesperadamente triste, com o qual
traduzia um desespero calado, de certo modo irremediável e definitivo, que já
se transformara em hábito e forma. Não só transverberava com sua desesperada
claridade a pessoa do vaidoso orador, ironizava e punha em evidência a situação
do momento, a expectativa e a disposição do público e o título um tanto
pretensioso da anunciada conferência – não, o olhar do Lobo da Estepe penetrava
todo o nosso tempo, toda a afetação, toda a ambição, toda a vaidade, todo o
jogo superficial de uma espiritualidade fabricada e frívola. Ah!
Lamentavelmente, o olhar ia mais fundo ainda, ia além das simples imperfeições
e desesperanças de nosso tempo, de nossa espiritualidade, de nossa cultura.
Chegava ao coração de toda a humanidade; expressava, num único segundo, toda a
dúvida de um pensador, talvez a de um conhecedor da dignidade e, sobretudo, do
sentido da vida humana. Esse olhar dizia: ‘Veja os macacos que somos! Veja o
que é o homem!’ E toda a celebridade, toda a inteligência, toda a conquista do
espírito, todo o afã para alcançar a sublimidade, a grandeza e o duradouro do
humano se esboroavam de repente e não passavam de frívolos trejeitos!” (Hermann
Hesse. O Lobo da Estepe. pp. 17-18).
O texto acima nos
mostra o que um olhar pode gerar um processo diverso de qualificação da
interseção. O Jovem personagem que relata a cena acima olha para Harry Haller,
o Lobo da Estepe, e em seu olhar desenvolve uma série de aferições de sentido
intermináveis. Bela exemplificação do misto de Ideias Complexas, Inversão,
Adição e Significado. O incrível disso é que o Lobo da Estepe sequer disse uma
palavra.
Escolhi abrir a
reflexão com uma obra literária pela abrangência relacionada a questões da
existência humana e sua compreensibilidade – o que soaria limitado se fossem
apresentados muitos exemplos concretos, pois seria uma impressão de “caso
singular”. A arte, em seus diversos aspectos, tem um alcance muito mais
abrangente aos que se identificam ou apreciam.
Nos momentos iniciais
da consulta em Filosofia Clínica, esta nos orienta a fazer o agendamento
mínimo, ou seja, nos leva a interferir o mínimo possível na fala do partilhante
(nome dado a quem procura os serviços do filósofo clínico) de modo que seja o
mais próximo possível de seu modo de estar no mundo. Importa notar que mesmo
que haja a adjetivação “mínimo” o procedimento permanece como um “agendamento”.
Na verdade, desde o
momento em que bate na porta de um filósofo clínico até sentar-se para iniciar
a partilha, o partilhante já está sendo agendado. O ambiente, a recepção, o
preenchimento da ficha, enfim, todo pequeno movimento vai na direção de inferir
algum tipo de impressão ao sujeito no processo da clínica.
Um simples gesto pode
levar o partilhante em direção às ideias complexas, adição, torná-lo altamente
inversivo, significar coisas diversas ao que intentava o filósofo ao recebê-lo.
A título de exemplo, um pequeno gesto do filósofo, um olhar como apresentado
acima, pode levar a significar indiferença. Isso pode vir de pré-juízos
formados ao longo da vida no qual via que toda vez que alguém não discordava de
seu ponto de vista, não estava dando atenção ao que ele dizia. E por aí
poderiam ser acrescentados infindáveis elementos importantes no processo da
clínica.
Quando iniciamos os
estudos de Filosofia Clínica aprendemos que ela não se restringe ao consultório
e que muitos estudantes não vão querer trabalhar em consultório depois de
formados. Mas, é possível e importante trazê-la para a vida cotidiana. Diante
disso, pensamos que se em consultório é difícil e demorado o processo de
compreensão da Estrutura de Pensamento do outro, no dia a dia, isso é muito
mais complexo.
Essa complexidade deve
ser levada em conta diante de atitudes que observamos por parte dos que nos
cercam quando não os compreendemos de imediato. Ações estranhas a nós, por
parte de pessoas com as quais convivemos, muitas vezes nos levam a ficar
indignados, nervosos, etc. Entretanto, diante do trecho literário que abriu
essa reflexão, vemos o quanto podem ser imperceptíveis os movimentos internos
da pessoas cuja ação posterior apenas é um reflexo. Logo, todo cuidado é pouco
antes de julgarmos indiscriminadamente a ação alheia. O outro permanece sempre
um mistério cujo alcance de compreensão de nossa parte é sempre limitada. Fica,
com isso, uma lição da Filosofia Clínica: respeito à singularidade.
*Prof. Dr. Miguel
Angelo Caruzo
Filósofo. Filósofo Clínico.
Escritor. Livre Pensador.
Teresópolis/RJ
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