Este é o artigo número
200 deste blog. Nunca imaginei que manteria essa atividade por tanto tempo com
tamanho entusiasmo e regularidade. Começou como uma brincadeira e foi ficando.
Antes de qualquer coisa, quero agradecer aos leitores que me acompanharam, criticaram,
aconselharam e, especialmente, tiveram paciência comigo na riqueza e na pobreza
dos textos. Preciso de vocês, mas também devo confessar algo que talvez não
gostem de saber. Escrever é o verdadeiro prazer, ser lido é uma satisfação
complementar.
Jamais tive obrigação
alguma de produzir textos. Escrevo porque gosto, sinto prazer, relaxo, me forço
a pensar, desligo do cotidiano e no final, quando nasce o texto, quase sempre,
sou possuído por um sentimento de arrebatamento. Em cada argumento que produzo,
me dou o luxo de viajar com as ideias para qualquer lugar. Posso também ser
quem eu quiser e, se me der vontade, utilizar minha caneta como uma arma
potente e terrível, criticando, polemizando, elogiando, detonando, fazendo
declaração de amor, pedindo perdão. Já pratiquei tudo isso, aberta ou
veladamente, em postagens anteriores.
Geralmente um autor se
expõe em suas obras, mas se quiser, pode também se ocultar por trás de sua
criação. Quando um escritor policial assassina determinada pessoa em seu livro,
necessariamente não está falando da vitima, pode estar aniquilando mentalmente,
por exemplo, o síndico de seu prédio, o colega que lhe perturba ou o prefeito
que lhe cobra impostos. Um escritor erótico, ao narrar com minúcias todo o
processo de sedução pode estar dando asas a sua fantasia de trair a esposa.
Como saber? Precisamos mesmo descobrir o que está por trás de um belo conto?
Não basta a parte lúdica de um show de mágicas, é preciso descobrir o segredo
dos truques? A quem interessa saber se o escritor é casado, solteiro, homossexual,
devoto, ateu, neurótico ou depressivo? Afinal, um escritor precisa ser lido ou
visto?
Alguns de meus textos
são autobiográficos. Tento despistar, camuflar, mas nem sempre consigo. Troco
de nome, profissão, sexo, idade, me transporto, posso ser quem eu quiser. O
escritor é um ser que deve estar aberto a viajar por outras experiências,
outras culturas, outras vidas. Não precisa ser coerente, pode até mesmo negar a
si próprio. Quando relato em um texto
que fui a um jantar, discuti com alguém, encontrei um amor antigo, engravidei
uma amiga, nem sempre o fato aconteceu ou transcorreu exatamente daquela
maneira. A escrita não é um veículo para se chegar a uma verdade absoluta. A
escrita é uma viagem interminável de questionamentos, descobertas, sensações. E
nas mentiras que conta, o escritor acaba por revelar sua verdade.
A maior parte do tempo
de um escritor não é utilizada para escrever. É preciso ler muito, para só
então se aventurar a redigir algo. Às vezes é necessário revirar metade de uma
biblioteca para conceber um só livro. É preciso pesquisar, estudar,
experimentar e, por fim, entrar no corpo e na alma do personagem idealizado.
Por vezes se confundir, e nos melhores casos, deixar que o protagonista
determine o rumo da narrativa. Não existe mais o criador, a criatura ganha vida
própria, assume o comando e define seu destino. O verdadeiro escritor encontra
seu personagem só depois de tê-lo criado.
Conviver com um
escritor não é fácil. Para criar, ele precisa se isolar, entrar em si mesmo e
não encontrar ninguém durante horas ou dias. A solidão da escrita é assustadora, está muito perto da loucura, mas
é só a partir desta solidão que vão surgir os versos, as perguntas, e talvez a
resposta. Um escritor, quando em solidão criativa, não tem contato, não tem
família. Não pode ter família. Naquele momento ele está vivendo o papel do
mocinho, do bandido, da princesa, do gnomo, da fada. Quando retorna para sua
família, pode vir tatuado por seu personagem. É o preço de escrever.
Nem sempre o escritor
consegue explicar de onde surgiu sua inspiração. No meu caso, manifesta-se
subitamente, semelhante aos sonhos que invadem nossas mentes De repente, surge
um pensamento estranho. Fatos corriqueiros não me inspiram. Precisa ser algo
esquisito, extravagante, insólito, incomum. Anoto sem pensar todas as
informações. Depois, começo a matutar o assunto e tento achar uma explicação
razoável para aquilo que ficou além da minha compreensão, como se estivesse
tentando justificar aquilo que anotei. Fico dias, às vezes meses com o mistério
me envolvendo. Quando desisto de encontrar a solução, então o trabalho ficou
pronto. Coloco as idéias em forma de palavras, e as entrego ao público para
compartilhar. Quem sabe algum leitor possa me auxiliar. Meus textos podem ser
um pedido de ajuda. O objetivo de um escritor é fazer pensar aqueles que podem
pensar, e, se conseguir que o leitor misture ficção e realidade, atinge a
glória.
Meu trabalho como
filósofo escritor é expor ideias que estão para além da vida ordinária,
desafiando as fronteiras da razão, contradizendo os limites do senso comum.
Alguns podem não concordar, entender como uma afronta e até mesmo se injuriar.
É claro que me importo com a reação que desperto no leitor. Escrever é uma terapia,
publicar é dar a cara pra bater. Sei dos riscos que estou correndo quando lanço
uma provocação literária. Aquilo que tornei público pode respingar em minha
vida privada. Se por um lado minha intenção é instigar reações e fazer com que
o leitor me confunda com o personagem, não aprecio quando presumem que a
narrativa é cópia fiel da minha vida pessoal. De qualquer forma, esta dubeidade
intelectual me excita, mostra que ainda preciso melhorar e funciona como um
convite para me debruçar sobre uma folha de papel e redigir mais outra crônica.
É o custo de quem se aventura na perigosa e sedutora arte de escrever.
Ildo Meyer
Médico. Escritor.
Filósofo Clínico. Livre Pensador.
Porto Alegre/RS
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