Há uma confusão dentro da própria Filosofia Clínica que se expande para quem quer conhecê-la. É quando alguém pergunta para um filósofo clínico – e sempre perguntam – se a filosofia clínica aceita a singularidade como ela é, o que faz quando atende um psicopata ou um pervertido ou alguém deste tipo? Aceitamos sua moralidade perversa porque é “singular”?
A resposta que muitos filósofos
clínicos dão é mais uma confusão do que uma explicação. Por isso é importante
dividir a resposta. Singularidade em filosofia clínica é uma questão
terapêutica, e a pergunta que fazem acima é moral. Defender a singularidade
terapêutica não é defender certa moralidade ou ter um relativismo moral. São
coisas diferentes. Vou explicar.
Aceitar e defender a
singularidade terapêutica é compreender que para exercer uma terapia para cada
pessoa é necessário que o terapeuta tenha o outro como único, irrepetível,
inédito em sua estrutura interna, em sua representação de mundo e seus modos de
ser no mundo. Cada uma destas coisas e todas juntas em noção de conjunto são
irrepetíveis em outra pessoa e o horizonte de significados e sentidos que se
expressa daí também são únicos e inéditos. É só a partir desta perspectiva que
se pode realizar uma terapêutica em filosofia clínica.
Toda inteligibilidade do que se
passa com aquela pessoa está nela mesma e não fora dela. Não há nada de fora
que seja necessário trazer à terapia para compreendê-la melhor. Tudo está no
que aparece em sua narrativa. Essa unicidade e irrepetibilidade de cada pessoa
é o que chamamos de singularidade. E ao compreender em uma noção de conjunto
toda essa estrutura interna e seus movimentos, não se deve realizar nenhum
julgamento normativo ou moral sobre ela. O que aparece enquanto singularidade
não é correto ou errado, normal ou anormal, bom ou mau. É o que é, ponto! Neste
sentido, não estamos presos ao conteúdo da narrativa do outro, mas ao que
aparece por ela, ou seja, sua estrutura interna. Independente do conteúdo que
for narrado, o terapeuta não deve fazer julgamentos de valor sobre o conteúdo.
É aí, justamente aí que aparece a confusão da pergunta acima.
Mas se o conteúdo que aparece é
“imoral”? Se o que o partilhante narra é algo moralmente perverso ou reprovável
até judicialmente? A Filosofia Clínica acolhe a singularidade terapêutica sem
se preocupar com a moralidade do que aparece?
Acolher a singularidade
terapêutica não é acolher moralmente o outro, mas também não é não acolher. O
que acontece é que temos, como pessoas, limites de aceitação moral e pode ser
que o conteúdo que venha à tona na terapia afronte ou ofenda nossos juízos
morais. Não estamos ali para sermos juízes de nada, mas pode acontecer que
aquilo que aparece na terapia nos impeça de manter o processo terapêutico.
Tinha uma amiga terapeuta
feminista engajada socialmente que dizia que até acolheria a mulher que é
agredida e conseguira manter o eixo terapêutico para ajudá-la, mas se recebesse
o homem que batia na mulher ela quebraria a cadeira na cabeça dele. Lúcio
Packter, o sistematizador da filosofia clínica, escreveu em um dos seus
cadernos iniciais das aulas de formação das primeiras turmas dos anos 90, que
se ele recebesse para atender um político que falasse que roubava dinheiro do
governo que era da merenda das crianças nas escolas, ele levantava dali e ia
denunciá-lo à polícia.
Para ambos os terapeutas acima o
limite dos atendimentos deles é sua própria moralidade. Eu já atendi mulher
envolvida em violência doméstica como vítima, o que me revolta profundamente,
mas tive que me conter quando ela disse que queria superar isso e manter o
casamento. De certa forma, era melhor ela estar comigo do que sem mim, e então
tive que ceder em meus juízos de valor para manter a terapia.
Também já atendi um pai que
espancava seu filho, o que me revolta muito, pois nunca bati nos meus. Tive que
me conter para conseguir percebê-lo terapeuticamente o que resultou em um novo
modo de tratar seu filho, parando de bater nele. Se ele estava ali, em terapia,
de alguma forma, queria mudar e não estava satisfeito com sua conduta, o que o
envergonhava demasiado como pai e marido.
A pessoa que vai à terapia, em
princípio, quer mudar algo que não está bem. Acolher sua singularidade
terapêutica é a forma de iniciar o processo para esta mudança. Acolher
moralmente seus juízos morais ou normativos não é uma obrigação nem do método
nem do terapeuta. Por isso, acolher a singularidade terapêutica não é defender
o partilhante como “certo” moralmente frente ao mundo e aceitar seus juízos
(i)morais.
Um psicopata nunca vai à terapia.
Desafio qualquer terapeuta a me dizer quando tiveram em seu consultório um
psicopata que foi por vontade própria. “Cansei de esquartejar as pessoas,
doutor, por isso estou aqui. Quero mudar”. Essas pessoas só vão à terapia por
força judiciária quando o psiquiatra forense afirma que é psicopata. Ele vai
preso e tem que ir à terapia involuntariamente.
Se qualquer um de nós terapeutas
recebesse uma pessoa dessas em seu consultório, que foi por vontade própria,
sem coação judiciária, o que faria? Ir por vontade própria é a primeira
condição para se fazer uma terapia que tenha resultado. Você o receberia e
tentaria ajudá-lo a se modificar? Ou saltaria da cadeira e iria denunciá-lo
diretamente? Quais são seus limites morais que podem interferir em sua prática
terapêutica?
*Prof. Dr. Fernando Fontoura
Filósofo. Mestre e Doutor em
Filosofia. Escritor. Palestrante. Filósofo Clínico. Em 2019, por indicação do conselho e direção da Casa da Filosofia Clínica, recebeu o título de "Doutor Honoris Causa".
**Texto publicado na edição
primavera da Revista da Casa da Filosofia Clínica.
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