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Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"Meu caro colega: recebi sua carta pedindo-me, com pressa, a biografia de Ramalho Ortigão. Creio que o que você deseja é a biografia do espírito de Ramalho Ortigão, a história interior, a do seu talento, não a história exterior, a da sua vida (...)" "(...) A multidão vê falho. Vê, em Portugal sobretudo. Pela aceitação passiva das opiniões impostas, pelo apagamento das faculdades críticas, por preguiça de exame - o público vê como lhe dizem que é (...)" "(...) Nós em Inglaterra afirmamos, com a Bíblia apertada contra o coração, e a garrafa de gin escondida debaixo da mesa, que a moralidade dos nossos costumes é superior à de todas as nações do Universo (...)" "(...) Teve por isso de construir outra linguagem que pudesse traduzir todo o homem, toda a Natureza, nos seus mais adversos extremos (...) tão dúctil, penetrante, transcendente que pudesse modelar o invisível e dizer o indizível. Victor Hugo disse o indizível, desde o esparso cismar dos olhos azu

O deserto e o dilúvio*

Sonhava ficar em casa de pernas pro ar durante três meses enquanto é jovem e sadio? Pode comemorar. Seu pedido foi atendido. Você está livre do trabalho, da escola, da universidade. Agora tem tempo de sobra pra fazer o que quiser. Não está doente, tampouco aposentado e se tiver sorte ou for precavido, seus rendimentos ainda estão garantidos.   Só que não. Você está doente, mas não sabe. Os sintomas estão saltando aos olhos e você não vê ou se nega a enxergar. Pensa que está saudável e assintomático, mas está enganado. Não estou falando do coronavirus, desta praga vamos nos salvar. A sua doença é mais grave, assumiu uma forma crônica e a única maneira de se curar talvez seja o confinamento obrigatório.   Hipócrates, o pai da medicina, dois mil anos atrás prescrevia que antes de curar alguém é preciso perguntar se a pessoa está disposta a desistir das coisas que a fizeram adoecer. Faz de conta que seu filho adora sorvete, mas precisa parar de comer porque está ficando obeso. Come e

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"(...) No fundo da prática científica existe um discurso que diz: 'nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar' (...)" "(...) Mas achamos também, e de forma tão profundamente arraigada na nossa civilização, esta ideia que repugna à ciência e à filosofia: que a verdade, como o relâmpago, não nos espera onde temos a paciência de embosca-la e a habilidade de surpreendê-la, mas que tem instantes propícios, lugares, privilegiados, não só para sair da sombra, como para realmente se produzir"  "(...) Se existe uma geografia da verdade, esta é a dos espaços onde reside, e não simplesmente a dos lugares onde nos coloca

Quem? O sentido da Autogenia***

Autogenia. Uma aproximação da questão: “quem é esta pessoa”   Autogenia   não é uma palavra corrente, na filosofia, na clínica e, pouco usada nas ciências,   daí ser prudente defini-la   para os propósitos deste texto.   A palavra grega “auto” traz o sentido daquilo que é próprio e, “genos”- também do grego – o de origem ou nascimento. De maneira simples, autogenia pode ser entendida como a qualidade daquilo originado por si mesmo, independente de força ou recurso externo a si.   E como essa palavra autogenia participa no mundo   da filosofia clínica?   Autogenia pode ser considerado como um retrato existencial desta pessoa à frente do clínico. Como ela se constituiu, se tornou o que é.   Ela se vincula a uma idéia de totalidade da pessoa, próxima de certa forma da noção de personalidade ou de caráter usado pelas psicologias e por algumas psicanálises. Na filosofia clínica ela deve ser resultado de um minucioso processo de construção, sempre vivo e reconstruído. Autogenia se ap

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"O pensamento só é interessante quando é perigoso. Perigoso para a opinião consagrada e ronronante que serve de fundamento a todos esses 'pareceres de especialistas' em que se refestela o poder (...) São cada vez mais numerosos os que nada têm a dizer e o dizem em voz alta (...)" "(...) Essa voz do outro, inimiga dos tabeliões, dos chefes de escritório, dos sargentos de toda espécie. Importante que saibamos nos opor ao finório jargão da moralidade bem pensante (...)" "Num momento em que predomina o nomadismo existencial, a divagação intelectual deve oferecer resposta, como num eco. Antes a pergunta que a solução. A precaução, supostamente (se supondo) científica, deve dar lugar à audácia das ideias (...)" "(...) as apresentações vitalistas se empenham em descrever os frêmitos, as efervescências, o fervilhar de uma cultura em perpétua gestação (...)" "(...) Já que Dionísio é, como sabemos, um deus com cem nomes. Não poderia haver melh

Instrução em Filosofia Clínica*

A Filosofia Clínica é um tema amplo a ponto de seu próprio sistematizador, Lúcio Packter, falar que mesmo uma enciclopédia seria um meio limitado para abarcá-lo. Tal tarefa, dizia ele, ficaria a cargo das gerações vindouras de estudiosos desta nova abordagem terapêutica. Em razão desta amplitude, tudo o que se disser sobre a Filosofia Clínica tocará apenas em breves partes do todo que a constitui. Dito isto, pretendo apontar orientações de estudos para os iniciantes a fim de que, ao exercer o trabalho de consultório ou usar seus princípios para as mais diversas áreas profissionais, tenham meios de obter resultados consistentes. Essas orientações não são imposições. Como trabalhamos com a questão da singularidade, cada aspecto apresentado deve ser acolhido, adaptado ou até recusado à medida que encontrar ou não consonâncias em sua Estrutura de Pensamento. A primeira orientação diz respeito ao domínio teórico da abordagem. Embora a prática seja mais complexa do que a exposição didáti

Paraíso Perdido***

"Nota do prefácio I: 'A melhor opinião que alguém pode emitir acerca do Paraíso Perdido - como, aliás, de todas as grandes obras literárias, - é ler e reler o próprio poema, e não perder tempo a ler o que outros escreveram a seu respeito (...)" "Nota do prefácio II: Milton anuncia o tema da sua obra, nos três primeiros versos: ' Do homem primeiro canta, empírea Musa, A rebeldia - e o fruto, que, vedado, Com seu mortal sabor nos trouxe ao mundo'  Satã (...) insinua que Deus pretende manter a Raça Humana à margem da Omnipotência Divina; Satã diz-lhe que Deus, ao interditar-lhes que provassem a Maçã, promulgara um veto arbitrário destinado a mantê-los sujeitos à sua vontade (...)'" "Nota do prefácio III: '(...) É o próprio Satã que relata as supostas afrontas que recebeu de Deus (...) O seu caráter está sintetizado no pensamento que confessa, de que: é melhor reinar no inferno do que ser vassalo no Céu'"  "(...) Eis a região, o so

Reflexões de um Filósofo Clínico*

O meu filho me perguntou qual é o objetivo da vida. Levei uns minutos para lhe responder; foi o Aristóteles quem me soprou a resposta. Disse ao meu filho que o objetivo da vida é descobrir o que melhor fazemos aqui no mundo, e fazer isso cada vez melhor. Fazendo o que fazemos melhor, podemos ocupar o nosso lugar na ordem da existência - o que nos harmoniza com o Cosmos e nos conduz pela estrada da eudaimonia. * * * O critério dos ganhos financeiros não pode ser a medida do sucesso de ninguém. Todos conhecemos pessoas milionárias que levam uma vida miserável. Somente consigo julgar o sucesso de uma pessoa a partir do critério da auto-realização - isto é: a pessoa bem-sucedida é aquela que encontra a realização da sua existência no trabalho que se propõe a fazer, seja intelectual, artístico, técnico ou prático. O dinheiro? É importante para a sobrevivência, nada mais. * * * É por isso que eu já procuro descobrir as aptidões do João. Assim, posso incentivá-lo, de diferen

Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*

"(...) Só ficava satisfeito quando conseguia harmonizar os perfumes e as cores dos ramos de flores e mesmo das plantas de jardim. Disponho os cheiros que quero, as pétalas, assim como um escritor dispõe as palavras segundo o significado e o som (...) É poesia então ? O que mais poderiam ser as flores ? Se Deus quisesse escrever um poema, não seria com delfínios e dálias ? "(...) Tanto ela como Peter possuíam a elegância natural que parece pedir para ser fotografada, para transcender o tempo - que evidenciava possibilidades realizadas (...)" "(...) Conheço Nápoles um pouco - ele respondeu - Estive lá uma vez. Abarrotada de gente. Pessoas demais vivendo perto demais umas das outras para o meu gosto. Talvez seja a impossibilidade de dispor de vastos espaços abertos o que torna as pessoas tão duras. As pessoas precisam poder se perder para serem felizes (...)" "(...) Mapas... Por que ele lhe daria mapas ? (...) Talvez para lhe mostrar que havia um mundo além d

O Viajante de Amanhãs*

"O filósofo é uma das maneiras pela qual se manifesta a oficina da natureza - o filósofo e o artista falam dos segredos da atividade da natureza"                                                           Friedrich Nietzsche O espírito aventureiro impróprio à cristalização do saber se refaz nas escaramuças de um território movido a movimento. Seu viés de intimidade precursora se alimenta das ruas, estradas, subúrbios desmerecidos. É incomum que sejam facilmente compartilháveis, esses eventos anteriores ao gesso conceitual.  A irregularidade narrativa como propósito sem propósito se reveste de uma quase poesia, para tentar dizer algo sobre os eventos irreconciliáveis com a ótica dos limites bem definidos. Essa lógica de singularidade flutuante se aplica às coisas irreconhecíveis ao vocabulário sabido.  Seu desprezo pelas fronteiras, objetivadas pelos acordos e leis, é capaz de antecipar amanhãs no agora irrecusável. Num caráter de existência marginal entre o

Fragmentos Filosóficos, Literários, e algo mais*

" (...) Todo estado mental é irredutível: o mero fato de nomeá-lo - de classificá-lo - implica um falseamento (...) "(...) Dezenove anos tinha vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e assim também as memórias mais antigas e mais triviais (...)" "(...) Logo refletiu que a realidade não costuma coincidir com as previsões; com lógica perversa inferiu que prever um detalhe circunstancial é impedir que este aconteça (...)" "Hladik preconizava o verso porque ele impede que os espectadores se esqueçam da irrealidade, que é a condição da arte (...)" "Talvez Schopenhauer tenha razão: eu sou os outros, qualquer homem é todos os homens, Shakespeare é de algum modo o miserável John Vincent Moon" "(...) O Jardim das Veredas que se Bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do univer

Reflexões e Poéticas da Singularidade*

Quem nunca sentiu dor enquanto o seu corpo crescia e tudo mudava estava distraído demais para perceber que estamos sempre em transformação. Aprender dói porque nos faz crescer e essa transformação nos lança rumo àquilo que ainda desconhecemos. E isso pode ser assustador mesmo quando é necessário prosseguir... A verdade é que não há outro caminho para quem deseja despertar consciência senão ousar rumo ao novo. Provavelmente possa ser esse o fenômeno que nos torne cada vez mais plenos, justos, livres e, por conseguinte, felizes. Parece mesmo que quanto mais nos autoconhecermos, mais conhecimento teremos agora. E curiosamente a recíproca é verdadeira, uma vez que um fenômeno provoca o outro e vice versa intensamente! Suspeito que por isso a solitude agrade tanto aos inquietos por dentro que se permitem transbordar na arte que nesse caso, é uma poesia singular, desinteressada e que ousa sem dó escolher não se adequar a nada já posto a priori como convenção; mesmo respeitando e