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Fragmentos Filosóficos, Devaneios, e algo mais*


"Meu caro colega: recebi sua carta pedindo-me, com pressa, a biografia de Ramalho Ortigão. Creio que o que você deseja é a biografia do espírito de Ramalho Ortigão, a história interior, a do seu talento, não a história exterior, a da sua vida (...)"

"(...) A multidão vê falho. Vê, em Portugal sobretudo. Pela aceitação passiva das opiniões impostas, pelo apagamento das faculdades críticas, por preguiça de exame - o público vê como lhe dizem que é (...)"

"(...) Nós em Inglaterra afirmamos, com a Bíblia apertada contra o coração, e a garrafa de gin escondida debaixo da mesa, que a moralidade dos nossos costumes é superior à de todas as nações do Universo (...)"

"(...) Teve por isso de construir outra linguagem que pudesse traduzir todo o homem, toda a Natureza, nos seus mais adversos extremos (...) tão dúctil, penetrante, transcendente que pudesse modelar o invisível e dizer o indizível. Victor Hugo disse o indizível, desde o esparso cismar dos olhos azuis de uma criança, até às cordas do vento que varrem o mar da Mancha (...)"

"(...) um alto espírito poético que, num perpétuo arranque, quer penetrar para além do mensurável e do tangível, decifrar a pedra e tocar no segredo das coisas - se não produz verdades que a ciência possa registrar, sobre, mais que nenhum outro espírito, até às proximidades desse ideal (...) promove uma alta educação espiritual, levanta os corações, eleva da pesada materialidade para as formas mais belas e mais puras do pensar e do sentir e dá docemente à vida não sei que gosto divino. Victor Hugo é de todos os poetas aquele que no seu ardente idealismo mais chegou à beira de Deus (...)"

"(...) é Hugo perfeitamente um francês ? (...) Antes me parece às vezes celta e teutônico. O seu gênio sombrio; a sua visão descomunal; o seu inquieto espiritualismo; esse esplendor de linguagem que torna as suas ideias difíceis de circulação, porque em vez dessa ligeireza da medalha, que dá às ideias francesas a sua facilidade de transmissão, elas oferecem a pesada complicação de um monumento - tudo isso se me afigura estar em contraste com o espírito francês definido, sóbrio, exato, regrado, claro, e positivo (...)" 

"(...) porque um poeta cantou, o Mundo torna-se melhor (...)"

"(...) Esta expressão, 'a leitura', há cem anos, sugeria logo a imagem de uma livraria silenciosa, com bustos de Platão e de Sêneca, uma ampla poltrona almofadada, uma janela aberta sobre os aromas de um jardim: e nesse retiro austero de paz estudiosa, um homem fino, erudito, saboreando linha a linha o seu livro, num recolhimento quase amoroso. A ideia de leitura, hoje, lembra apenas uma turba folheando páginas à pressa, no rumor de uma praça (...)" 

"(...) Em literatura, em costumes, em política (...) nós estamos vivendo e estamos morrendo deste obtuso, viscoso aferro ao vago das primeiras impressões (...)"

"(...) A arte, para os que não se enclausuraram todos nela como nos muros de um mosteiro, poetiza singularmente a existência (...) é o labor de um Flaubert, erguendo heroicamente palavra a palavra o seu monumento, com uma pena rebelde (...)"

"A arte é tudo (...) Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo. Leônidas ou Péricles não bastariam para que a velha Grécia ainda vivesse, nova e radiosa, nos nossos espíritos: foi-lhe preciso ter Aristófanes e Ésquilo. Tudo é efêmero e oco nas sociedades - sobretudo o que nelas mais nos deslumbra. Podes-me tu dizer quem foram, no tempo de Shakespeare, os grandes banqueiros e as formosas mulheres ? Onde estão os sacos de ouro deles e o rolar do seu luxo ? Onde estão os olhos claros delas ? Onde estão as rosas de York que floriram então ? Mas Shakespeare está realmente tão vivo (...) Está vivo de uma vida melhor, porque o seu espírito fulge com um sereno e contínuo esplendor, sem que o perturbem mais as humilhantes misérias da carne (...)" 

"(...) Podes-me tu dizer quem eram os ministros do Império em 1856, há apenas trinta anos, quando Gustave Flaubert escrevia 'Madame Bovary' ?"

" (...) Pode bem suceder que um dia mais tarde, um desses amadores de antiguidades que se entretêm a revolver o lixo dos tempos, encontre, num recanto esquecido de velha livraria, entre o pó e o bolor, amarelado e roído dos vermes, um dos nosso livros (...) E lerá o livro todo: e o que tu pensaste fá-lo-á pensar, e, sorrirá com o teu sorriso! As tuas criações perpassarão, queixosas ou alegres, com a vida que tinham no teu espírito, por diante da sua lâmpada - tendo recebido no espírito dele uma reencarnação fugitiva, e por elas o teu ser, disperso na substância, estará um instante misturado a um ser vivo, e palpitando na sua vida toda. E quem ousará dizer que isto não é uma ressureição ? (...) "

*Eça de Queiroz in "Notas Contemporâneas". Ed. Livros do Brasil. Lisboa. 2000.

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